CRÍTICA – 20 DIAS EM MARIUPOL

CRÍTICA – 20 DIAS EM MARIUPOL

“Toda imagem é uma memória de memórias, um grande jardim de arquivos declaradamente vivos. Mais do que isso: uma sobrevivência, uma supervivência.” (SAMAIN, 2012) Essa fala de Samain alcança o cerne de 20 Dias em Mariupol, filme que é recheado de imagens que são memórias de quem é filmado e de quem filma. As imagens com potencial de memória aparecem aqui por se tratar de um documentário que nos mostra o dia a dia em uma cidade em meio a um conflito armado dando um enfoque maior nos cidadãos e como sobrevivem em meio à guerra.

O filme consegue ir além do tema sobre a guerra, quando o narrador e diretor, Mstyslav Chernov, aborda seus pontos de vista, pensamentos e sentimentos vividos naquele momento. A narração tenta ser imparcial e invisível por boa parte do filme, porém, por meio de suas escolhas do que filmar e do que dizer, enxergamos o seu ponto de vista sobre a guerra de uma forma íntima, o que nos aproxima desse narrador-personagem. Além disso, essa escolha por imagens de ponto de vista faz o espectador assistir o filme como se estivesse presente naquele local junto de Chernov, o que intensifica essa experiência. A escolha do filme ser narrado pela pessoa que estava filmando e vivendo todos esses episódios traz mais veracidade e expressividade para o filme, pois não estamos apenas ouvindo um narrador, mas um sobrevivente.

Além disso, a narração tenta ser o mais imparcial possível, não fazendo julgamentos de valores sobre as escolhas e ações dos civis. Com o intuito de manter esse distanciamento emocional ao conduzir a história, o narrador fala com uma voz que parece apática e monótona. Porém, conseguimos ver sua expressão emocional quando conversa na língua nativa com os moradores de Mariupol. Essa diferença entre Chernov-narrador e Chernov-personagem existe para criar um equilíbrio emocional na narrativa. Desse modo, o narrador consegue guiar o espectador por essa história repleta de momentos extremamente sensíveis e que nos comovem intensamente.

O filme faz a escolha de manter esse equilíbrio emocional na narração e deixa a cargo dos cidadãos filmados serem os principais catalisadores de emoção. Para isso, procuram trazer para a montagem, personagens que tenham uma forte capacidade de transmitir emoções. Isso acontece por meio de suas histórias contadas com olhares repletos dos mais variados sentimentos, como ansiedade, angústica, raiva e tristeza. Além de filmar cidadãos que buscavam com toda a sua força sobreviver por mais algumas horas desejando o fim do conflito, o documentarista, também, registrou outra forma de se experienciar uma guerra. Chernov passa boa parte do filme com trabalhadores: médices, policiais e enfermeires. Pessoas encontram no trabalho uma forma de ocupar sua mente e sentido para a situação desumana que vivem. Essas pessoas mantem boa parte de sua vida pessoal de lado, exemplo disso é o chefe de policia que não comenta sobre sua família estar em Mariupol até que a conhecemos quando Chernov se junta a ele para sair da cidade. Em inúmeros momentos, vemos os trabalhadores da saúde não pararem mesmo quando há perigo de invasão ou bombardeio onde estão. O que emociona, irrita, causa angústia e tristeza nesses trabalhadores é a vida de outras pessoas que foram perdidas, não se importando com os riscos contra as suas próprias vidas.

Em certo ponto do documentário, vemos como os trabalhadores da zona hospitalar são obrigados, por não conseguirem mais armazenar os corpos, a cavar uma vala e jogá-los dentro. Esse momento mostra o ápice da desumanização que a guerra acarreta, pois é uma quebra da tradição cultural de fazer um rito fúnebre em homenagem aos falecidos. Durante essa situação, o documentarista filma um dos trabalhadores e o questiona para fazê-lo dizer como se sente, mas ele se esquiva até o último momento. Quando cede aos pedidos de Chernov, começa dizendo que não pode falar sobre como está se sentindo, pois: “Se eu começar a falar, vou chorar. Não vou conseguir falar.” O cinegrafista insiste: “Por favor, diga o que sente.” E ele responde: “O que sinto… Não sei o que sinto. O que deveria sentir nessa situação? A questão é que isso precisa terminar. Não sei a quem culpar, quem tem razão, quem começou tudo. Mas quero que todos se fodam… quem começou isso.” Toda essa fala, desde sua tentativa de não responder a pergunta, consegue representar como muitos desses trabalhadores se sentem. Para conseguir trabalhar precisam esconder seus sentimentos, pois quando se permitem senti-los não têm forças para continuar, pois é um sentimento forte demais. Como esse trabalhador disse: “Se eu começar a falar, vou chorar. Não vou conseguir falar.” O espectador que assiste a todos esses cidadãos, tanto os que sofrem perdas quanto os que trabalham, consegue sentir toda essa dor e sofrer com ela. É impossível não chorar e sentir a dor transmitida pelo documentário.

Ainda sobre a representação de trabalho no filme, mas indo para um caminho metalinguístico, 20 Dias em Mariupol existe, pois filmar tudo isso era o trabalho dos repórteres que enviavam as imagens para a AP (Associated Press), uma organização de notícias internacional que repassava para emissoras de outros países. Essa foi a forma que os dois repórteres lidaram com a guerra: trabalhando. Mesmo que 20 Dias em Mariupol seja um filme que aborde um estado de guerra, ele também é um filme que consegue ser um autorretrato intimista e reflexivo sobre o que estão fazendo. Nesse sentido, o filme me lembra trabalhos de formato semelhante produzidos por Agnès Varda, por exemplo, Os Catadores e Eu (2000). No qual Varda se insere no filme e se caracteriza uma catadora assim como os de batatas e lixos reciclados, pois se vê como uma catadora de imagens. Em 20 Dias em Mariupol, Chernov não se insere em cena tão corporalmente quanto Varda, mas consegue inserir suas lembranças de outros conflitos, de sua família e sentimentos. Com isso, mesmo que não seja visto seu rosto, quem assiste o filme sente sua presença sendo tão grande quanto se ele aparecesse em cena.  Essa inserção de comentários pessoais ocorre após meia hora de filme, Chernov reflete sobre seu trabalho e enquanto envia o que filmaram para a AP diz: “Penso em tudo o que este país passou nos últimos oito anos. Em tudo o que filmei. (…) Uma guerra que parece interminável. Milhares morreram. Continuamos filmando.” Essa passagem, carrega um peso sobre o que significa trabalhar como representante jornalístico em situações como essas e como isso acarreta dores emocionais. Essas dores parecem vir do excesso de memórias imagéticas que esses trabalhadores convivem ao filmar memórias, imagens e falas de outras pessoas que acabam se misturando com suas memórias, imagens e pensamentos e, por fim, tudo parece se tornar uma coisa só. Dessa forma, a noção de individuo se perde, ao dar maior valor a noção comunitária de escuta e representação de pessoas que mal conhece, mas precisa se conectar intensamente em um curto período de tempo.

Todos esses fragmentos de memórias do narrador, memórias de outras pessoas, imagens filmadas nos 20 dias em Mariupol e de arquivo são muito bem costuradas pela montagem construída por Michelle Mizner. Por meio de seu excelente trabalho, conseguiu estruturar a narrativa do filme sendo um documentário de ritmo e tema muito claro. Além de transmitir muito bem os sentimentos causados pela guerra vividos pelos civis filmados e pelos que filmaram.

Com tudo isso, 20 Dias em Mariupol consegue ser um documentário que emociona de maneira intensa e catártica. Mesmo horas após de tê-lo assistido, ainda rememorava as imagens e sentia a dor transmitida por elas. Também, é um documentário que consegue ter uma narração sólida ao nos guia em meio a essa destruição, se afastando para dar espaço aos civis que filma, mas em outros momentos se aproximando de maneira íntima do espectador abordando suas angústia de trabalho e de cidadão da Ucrânia. Um documentário com uma excelência artística e jornalística, conseguindo alcançar o êxito ao contar uma história equilibrada na razão e na emoção.


Filme: 20 Dniv u Mariupol (20 Dias em Mariupol).
Direção: Mstyslav Chernov.
Roteiro: Mstyslav Chernov.
Produção: Ucrânia.
Ano: 2023.
Gênero: Documentário.
Sinopse: O filme documenta os vinte dias que Chernov passou com os seus colegas durante o cerco de Mariupol em 2022. À medida que a invasão russa começa, a equipa de jornalistas ucranianos fica presa na cidade sitiada e luta para continuar o seu trabalho de documentação da guerra.
Classificação: 16 anos.
Distribuidor: PBS Distribution.
Nota: 9,5

Sobre o Autor

Share

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *