CRÍTICA – A MENINA SILENCIOSA

CRÍTICA – A MENINA SILENCIOSA

A Menina Silenciosa é a estreia de Colm Bairéad como diretor e roteirista de um longa metragem de ficção e ele consegue fazer um trabalho esplendoroso. O filme tem como protagonista Cáit interpretada por Catherine Clinch, mas ela não é o típico protagonista clássico, pois em vez de interagir com seu mundo ativamente, ela interage passivamente. Essa forma de agir e pensar poderia ser uma pedra no sapato do cineasta ao tentar conectar seu público a personagem, mas com a sua sensibilidade ao trabalhar com as imagens consegue nos conectar intimamente com Cáit. Assim, uma garota muito quieta que no nosso dia a dia passaria despercebida consegue nos impactar com suas sutilezas. A atuação minimalista de Catherine Clinch que também fazia sua estreia como atriz está excelente. Ela conseguiu mostrar em seu primeiro trabalho uma admirável habilidade para a atuação tendo muita força nos olhares e no trabalho de voz.

Somos apresentados a Cáit em cenas que demonstram como ela é negligenciada por todos de sua família, não recebendo o carinho e atenção necessária nesse período da infância. O motivo para suas irmãs não lhe ajudarem é sua “estranheza”, sua mãe está grávida do sexto filho enquanto tem que cuidar de um bebê de poucos anos e seu pai não se importar com a família preferindo beber, gastar o dinheiro, não ajudar com a fazenda e ainda ter uma amante. Tudo isso é de conhecimento de Cáit que observa a tudo com seus olhos bem abertos e amedrontados.

Outra característica da personagem que aprendemos logo no começo é sua ansiedade. Na sequência de cenas introdutórias, vemos Cáit entrar em casa e se esconder debaixo da cama, quando nenhum perigo parece existir. Esse costume de estar sempre na defensiva com medo do outro é justificável pelos olhares de desprezo que ela recebe de todos ao seu redor. A direção mostra isso com planos centralizados nesses olhares maldosos o que nos permite sentir o mesmo temor que Cáit. Para intensificar ainda mais essa sensação, o formato do enquadramento de tela escolhido é o quadrado. Dessa forma, o espectador se sente enclausurado, assim como Cáit se sente em sua vida diária. Assim, seu hábito de estar sempre na defensiva, silenciosa e com medo do futuro é compreendido pela audiência e conseguimos nos conectar com seus temores.

A Menina Silenciosa tem sua força emocional muito pautada nos olhares, tanto os que machucam Cáit, quanto os dela. A atuação minimalista de Catherine Clinch gera um impacto gigantesco por conta de seus olhares recheados de sentimentos complexos de serem transmitidos. No entanto, ela consegue fazer tudo isso com uma tremenda naturalidade o que faz parecer que seu êxito foi algo fácil de realizar. Como muitos artistas das artes performáticas dizem: fazer algo de enorme dificuldade parecer fácil para quem assiste, demonstra o quão habilidoso é. Por isso, acredito que Catherine é uma mestra na arte do olhar e espero ter a oportunidade de acompanhar sua carreira de futuro primoroso.

Sem muitas explicações, Cáit é levada para viver com um casal depois de sua mãe receber uma carta. Imaginamos que ela conhece essas pessoas para enviar sua filha para ficar com eles, mas nada é esclarecido para nós ou Cáit nos diálogos. Felizmente, esse acolhimento não é como o de sua família, ele é repleto de um cuidado sincero onde gestos pequenos carregam um amor tão grande e necessário para Cáit. O casal é Eibhlín interpretada por Carrie Crowley e Séan interpretado por Andrew Bennett.

Nesse momento o visual do filme muda para acompanhar a mudança na narrativa. Antes, a fotografia era muito pautada na escuridão por estar filmando a casa sem cuidados de Cáit, agora, muda para uma casa arejada, colorida e muito bem iluminada. Nesses detalhes da fotografia conduzida por Kate McCullough sentimos um frescor e a esperança de que Cáit terá uma chance de ter uma vida mais alegre. A partir dos cuidados de Eibhlín e Séan vemos como ela começa a viver. Uma menina que no primeiro encontro com o casal tinha uma aparência triste usando roupas sujas, em pouco tempo, começa a sorrir e sentir uma felicidade que faz nossos olhos brilharem.

Há uma cena que demonstra essa mudança em Cáit. É a cena dela correndo para buscar as cartas pela primeira vez. Primeiro vemos Cáit começar a correr em tempo normal, mas, em seguida, seu ponto de vista olhando para as árvores está em câmera lenta. Fazendo uma análise poética, isso permite o espectador ter a sensação de estar flutuando, como se estivéssemos felizes e despreocupados, uma sensação de leveza. Em seguida, os planos mostram Cáit correndo em câmera lenta e entendemos que ela, também, se desprendeu das ansiedades que a acompanhavam no passado. Agora, ela já não corre para fugir do seu presente, mas corre apreciando cada detalhe ao seu redor. Além disso, a capacidade de alargar o tempo que a câmera lenta traz demonstra como Cáit deseja que esse momento dure o máximo que puder. Todos esses detalhes conseguem realçar a felicidade que agora faz parte da vida dela.

Além disso, esse é um filme que lentamente expõe a trama por seu roteiro. Nada nos é entregue de bandeja por diálogos expositivos que expliquem cada detalhe sobre a vida das personagens. Um exemplo disso é a cena em que Séan comunica a decisão de que precisam “resolver esse problema”. A escolha de palavras parece muito forte para significar apenas que Cáit precisa de roupas novas, mas o casal age como se tudo fosse por causa disso. No entanto, sentimos que algo está errado, pois suas falas carregam muita emoção, algo reprimido que ainda não podemos ver começa a escorrer pelos diálogos. O que deixa toda essa cena ainda mais intrigante, é quando Cáit encontra Eibhlín chorando no banheiro, após Séan dizer que vão para cidade comprar roupas novas. Aqui, começamos a supor qual pode ser o significado por trás das roupas que Cáit estava usando até o momento. Só teremos a verdade exposta cenas a frente. Essa escolha de intrigar quem assiste dando pequenas pistas para esse mistério familiar é muito bem construído.

Com a resolução desse mistério, um elemento que já tinha sido inicialmente apresentado para nós com uma característica de possível perigo, ganha uma camada a mais: o poço. Ele está presente na vida de Cáit desde que chegou naquela nova casa e é usado para criar uma tensão na narrativa. No primeiro dia, Eibhlín leva ela para ir até o poço buscar água e lhe adverte para não ficar na beirada por ser perigoso. O poço reaparece durante a montagem da aproximação carinhosa entre Cáit e Eibhlín, mas com um significado de ternura, pois o ato de ir buscar água juntas as aproxima. No entanto, depois que sabemos como ele pode ser fatal, sempre que é mencionado, um sinal de alerta surge na mente de quem assiste. Seguindo a regra da “arma de Tchekhov”, na qual um elemento não aparece em uma narrativa se não será usado no futuro, o poço reaparece na história mais uma última vez.

No dia em que Cáit ia embora, Eibhlín comenta que vai buscar água no poço, quando voltar sozinha, depois desse comentário vai ao curral cuidar das vacas. Cáit com a intenção de ajudar vai ao poço sozinha. Por meio de uma decupagem de planos inteligentíssima, Colm constrói um suspense que nos faz prender a respiração. Quando Cáit coloca o balde na água, vemos ele pesar cada vez mais e sua mão ser levada cada vez mais pra baixo, depois disso há um corte e somos levados a observar Eibhlín terminando de limpar o curral. Por essa mudança brusca, somos impedidos de ver o que acontece com Cáit, assim não sabemos se ela caiu, não caiu, se afogou, bateu a cabeça… e por aí vai. Em meio ao não visto, nossas mentes são repletas de possibilidades que nos causam uma ansiedade latente. Acompanhamos Eibhlín procurar por Cáit apreensivos que o pior possa acontecer. Um trabalho de construção de tensão muito efetiva e que nos enche de emoção para o encerramento do filme.

Concluo que A Menina Silenciosa nos conquista nas minúcias e quando nos damos conta estamos chorando comovidos com cada detalhe da sensível história de Cáit.


Filme: An Cailín Ciúin (A Menina Silenciosa).
Elenco: Carrie Crowley, Andrew Bennett e Catherine Clinch.
Direção: Colm Bairéad.
Roteiro: Claire Keegan e Colm Bairéad.
Produção: Irlanda.
Ano: 2022.
Gênero: Drama.
Sinopse: Cáit é uma menina de nove anos que tem uma família enorme, pobre e disfuncional. Com a aproximação de mais um parto de sua mãe, ela é enviada para a casa de parentes distantes, onde a menina silenciosa faz uma dolorosa descoberta.
Classificação: 14 anos.
Distribuidor: Break Out Pictures.
Streaming: Reserva Imovision.
Nota: 10,0

Sobre o Autor

Share

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *