CRÍTICA – A SOCIEDADE DA NEVE

CRÍTICA – A SOCIEDADE DA NEVE

Calçando os sapatos de Nada de Novo no Front, o principal candidato da Netflix na categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar de 2024 é A Sociedade da Neve, filme escolhido pela Espanha para representar o país na premiação. A produção ganha notoriedade e apelos midiáticos por abordar uma das histórias reais mais inacreditáveis da história recente da humanidade: a queda de um avião na Cordilheira dos Andes que transportava um time de rugby uruguaio Old Christians até o Chile. Desde o acontecido, o fato se manteve bastante vivo no imaginário popular por conta do lançamento de diversos livros e adaptações para o cinema como o longa estadunidense Vivos, um clássico da Temperatura Máxima estrelado por Ethan Hawke.

Esta é uma dessas histórias praticamente prontas para serem levadas e apresentadas aos grandes estúdios, principalmente por conta do final feliz em que sabemos que os sobreviventes são resgatados. Contudo, a dificuldade de transpor tudo que envolve este acidente para a tela está em como equilibrar o respeito às vítimas com o fato dos sobreviventes terem se alimentado delas para conseguirem resistir às condições adversas. Neste sentido, J.A. Bayona faz muito bem esse equilíbrio, pois ele retira qualquer reflexão moral ou ótica julgadora em torno das ações dos envolvidos e deixa claro que, apesar de terem praticado canibalismo, em nenhum momento eles perderam a humanidade e o respeito com os mortos. 

Existia um pacto solidário de consentimento entre o grupo de jogadores de rugby cristãos em que autorizavam os seus companheiros a se alimentar dos seus corpos caso falecessem. Uma passagem da bíblia, bem pontuada por Numa Turcatti (Enzo Vogrincic Roldán), um dos que se recusaram a se alimentar de carne humana pelas suas crenças e foi um dos últimos a falecer, ajuda a entender um pouco o sentimento por trás do pacto: “Ninguém tem maior amor do que este: dar a alguém a sua vida pelos seus amigos”.

Por sinal, é ele que serve como narrador da história, substituindo a voz de John Malkovich – que interpretou Carlos Páez Rodríguez, filho do artista uruguaio Carlos Páez Vilaró – em Vivos. Por mais que a narração possua bons momentos e guie o espectador pelos sentimentos conflitantes de Numa, ela parece despropositada em meio a proposta de A Sociedade da Neve, que não coloca nenhum personagem na posição de protagonista e trabalha o time como um organismo único e multifacetado. Em muitos momentos essa escolha narrativa se torna até muito expositiva e perde a oportunidade de trabalhar melhor o silêncio e a solidão, ainda que eles não estivessem necessariamente sozinhos.

Entretanto, um dos principais méritos do diretor está em se desvencilhar de qualquer ótica religiosa em torno do acidente – até por isso soa ainda mais estranho que Numa seja o narrador de A Sociedade da Neve – e renega de certa forma uma abordagem em que parecesse que o motivo da sobrevivência do grupo estivesse atrelada a algum milagre como sempre o caso foi pintado pela mídia: o Milagre dos Andes. Não que não seja, cada um lê da forma que acredita, mas Bayona prefere reforçar o esforço e reconhece a coletividade do grupo como principal recurso, que garantiu a sobrevivência destes, como na forma em que captura os momentos mais intimistas de troca entre os companheiros, mostrando que, apesar das adversidades, eles nunca deixaram de se comportar como um time, ajudando uns aos outros tal qual fazem nos campos de futebol. Além disso, o roteiro de Bayona, Bernat Vilaplana, Jaime Marques e Nicolás Casariego, que adapta o livro homônimo do jornalista Pablo Vierci, cria espaços para que cada personagem se humanize, explorando os conflitos e dramas de cada um com muito afinco e respeito.

O diretor soube tirar proveito desse cenário com muito sentimentalismo e nestes momentos mais intimistas o filme encontra um híbrido perfeito entre o drama Oscar-bait que mira nas lágrimas com uma narrativa com significado, o que resgata um dos principais pontos positivos de um dos seus trabalhos mais aclamados: O Orfanato, em que trabalha uma premissa dolorosa com muito equilíbrio. 

Porém, é inegável que Bayona entrega o seu melhor na filmagem do acidente e da avalanche. Conhecido pelo seu trabalho em O Impossível e Jurassic World: Reino Ameaçado, parece que o diretor se especializou nos últimos anos em filmar cenas de desastre, incutindo muita carga dramática e tensão atrelado a um excelente trabalho técnico de montagem, sonoplastia e fotografia que praticamente nos transportam para o momento. Tanto o tsunami da Tailândia quanto a erupção do vulcão no segundo longa dos dinossauros, por exemplo, não me deixam mentir no que tange a capacidade ímpar dele de transferir tais sensações desesperadoras para a tela. Em A Sociedade da Neve acredito que ele vai além, pela forma imersiva em que a cena em questão foi filmada, pois eu sentia da cadeira do cinema cada solavanco da aeronave causado pela turbulência.

Os méritos, no entanto, que fizeram o filme espanhol se sobressair em relação aos outros longas, passam também pelas mãos do diretor de fotografia Pedro Luque e sua captura vertiginosa e agoniante do acidente aéreo (quem tem medo de viajar de avião pode ir se preparando para nunca ir ao Chile). Por mais funcional e técnico que seja nesses momentos, durante grande parte da produção a sua câmera ganha contornos mais profundos pela forma que filma o cenário no qual o filme todo se passa. Dentro da carcaça do avião em que os sobreviventes utilizam como abrigo a câmera praticamente cola no rosto deles e nos traz uma sensação de claustrofobia quando são soterrados pela avalanche. Por outro lado, fora do avião ele assume uma ótica muito mais contemplativa de reverência à grandiosidade da natureza e das montanhas que cercam o grupo. Muitas vezes ele tece comparações imagéticas dos personagens com o paredão e a vastidão branca e inóspita das Cordilheiras, mostrando o quão pequenos somos perante ao cenário. 

E está justamente na maneira em que Luque filma A Sociedade da Neve que conseguimos entender ainda mais a visão do autor do livro no qual o longa é baseado e de Bayona, pois da mesma forma em que o cinematógrafo filma as montanhas em contra-plongée, mostrando o quão grandiosas são; ele também faz o mesmo com os sobreviventes indicando o mesmo e de que estes, tal qual a natureza, merecem ser reverenciados por terem conseguido sobreviver a situações desumanas sem perder a humanidade; estruturando uma sociedade de iguais em que todos possuíam a mesma importância mesmo ainda mortos. Uma verdadeira amostra de respeito em tempos adversos.


A Sociedade da Neve - Poster Filme: Society of the Snow (A Sociedade da Neve)
Elenco: Enzo Vogrincic, Agustín Pardella, Matías Recalt, Tomas Wolf, Diego Ariel Vegezzi, Rafael Federman, Simon Hempe, Felipe González Otaño, Francisco Romero, Esteban Kukuriczka e Esteban Bigliardi
Direção: J.A. Bayona
Roteiro: J.A. Bayona, Bernat Vilaplana, Jaime Marques e Nicolás Casariego
Produção: Espanha
Ano: 2023
Gênero: Drama
Sinopse: Em 1972, um voo vindo do Uruguai colide com uma geleira nos Andes. Apenas 29 dos seus 45 passageiros sobreviveram ao acidente. Presos em um dos ambientes mais hostis do planeta, eles são forçados a lutar pelas suas vidas.
Classificação: 16 anos
Distribuidor: Netflix
Streaming: em breve na Netflix
Nota: 7,5

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