CRÍTICA – INTERLÚDIO

CRÍTICA – INTERLÚDIO

Interlúdio (1946) é um filme da autoria de Hitchcock, sendo mais um dentre seus grandes sucessos no gênero do suspense. A história acompanha o casal Alicia Huberman interpretada por Ingrid Bergman e Devlin interpretado por Cary Grant que se apaixonam um pelo outro, mas deixam as responsabilidades do trabalho entrar no meio da relação o que os afasta. Isso deixa uma rusga entre os dois que sempre negam seus sentimentos um pelo outro em suas falas, mas deixam bem claro o que sentem em suas ações. O que traz o suspense para essa história de amor é estarem trabalhando para o governo estadunidense como espiões dentro de um grupo nazista escondido no Brasil. A tensão de poderem ser desmascarados pela organização nazista fica no ar desde o primeiro contato com eles.

É importante avisar que o Brasil serve como uma locação para os acontecimentos, não tendo uma função política como nação. Diferente dos Estados Unidos que é representado como um país organizado militar e politicamente. Porém, isso não me incomoda. Pensando que esse filme foi feito na mesma década em que Carmem Miranda estrelava em filmes hollywoodianos que a ridicularizavam sem dar chances de atuar em papéis diversos a diminuindo a apenas uma dançarina exótica, não tinha como esperar uma representação muito diferente do país.

Continuando com as comparações com o cinema daquela década, estive recentemente assistindo alguns filmes da década anterior (1930) e a de Interlúdio (1940), por isso, ao assistir esse filme de Hitchcock, senti: um frescor. Isso se deve a capacidade do diretor em pensar em como trabalhar sonoramente o seu filme desde o roteiro. Dessa forma, o filme não fica atolado de falas uma atrás da outra, cansando nossos ouvidos sem nenhum momento de pausa que nos ambiente naquele mundo, algo comum em muitos filmes dessas décadas. Em Interlúdio, os momentos sem falas são tão importantes quanto as falas das personagens. Afinal, são nesses momentos em que a tensão é construída por meio da música, do som ambiente, dos olhares das personagens e da fotografia. Nesse momento, não sentimos que estamos apenas assistindo uma história em movimento com imagens, mas o surgimento de uma linguagem cinematográfica presente até hoje.

Há algo muito especial na fotografia desse filme ao trabalhar com um jogo de luz e sombras que algumas vezes esconde parte das personagens. Além de construir planos muito belos por meio desse tratamento da iluminação, também é capaz de trazer simbolicamente a ideia de que essas personagens estão trabalhando nas sombras, observando aquele grupo inimigo tentando ao máximo não serem vistos. Além disso, é encantador ver algumas construções feitas pela direção em busca de planos que retratem uma subjetividade maior com a personagem de Ingrid Bergman. Alicia, em certo momento da história, começa a ser envenenada, mas ela demora a descobrir o que estava acontecendo com ela e quem estava a envenenando. No momento em que ela descobre a verdade, as personagens que estavam fazendo isso estão em cena junto dela e, por meio de sua visão afetada pelo envenenamento e pela ansiedade de se livrar daquele pesadelo, ela os enxerga como se fossem sombras gigantes que dominam o espaço como fantasmas ou monstros sem face, sem humanidade. Esse pesadelo visual que ela vive é transpassado por nos pelos jogos de iluminação da fotografia, escolhas de planos da direção e música. Tudo isso em conjunto consegue nos trazer uma sensação de desespero tão grande quanto Alicia sente naquele momento.

O final dessa operação é satisfatória para nós, pois Alicia consegue sobreviver e quem a envenenava sofrerá uma morte terrível. Além disso, o relacionamento de Alicia e Devlin recebe um fechamento tão satisfatório quanto, pois, depois de acompanharmos esses dois bobos apaixonados negarem os sentimentos um pelo outro o filme inteiro, ao final, eles confessam seus amores e o filme encerra dando a entender que colocarão a paixão de um pelo outro como a responsabilidade número um de suas vidas. Um final feliz digno de um “viveram felizes para sempre”.

Antes de dar minha conclusão sobre o trabalho artístico de Hitchcock, acho importante pontuar algumas questões sobre o contexto histórico desse filme quando se trata dos Estados Unidos e sua relação com seus países vizinhos, nesse caso o Brasil. Como foi dito anteriormente, nessa mesma década do filme Interlúdio, Carmem estava estrelando em filmes de Hollywood como uma dançarina exótica de um país tropical. Representando para os estadunidenses o papel que um país como o Brasil deveria representar para eles: da ingenuidade facilmente explorada, seja sexualmente, economicamente ou politicamente. Em Interlúdio vemos o Rio de Janeiro sendo explorado como um pano de fundo bonito para se contar essa história, mantendo o Brasil como um país ingênuo que não se intromete na política e nas ações militares quando eles estão por aqui. Esse domínio não é criticado ou pontuado como um problema político, mas como algo bom, afinal, o Brasil estava sofrendo com a presença de nazistas e os Estados Unidos resolveu tudo.

Além disso, é interessante analisar como os Estados Unidos é representado em Interlúdio em relação à forma como finalizam a missão. O que a história nos faz acreditar que aconteceu após o encerramento do filme é: os nazistas mataram quem estava envenenando Alicia ao perceberem que essa pessoa foi culpada de trazer uma espiã estadunidense para perto do ciclo secreto deles. Porém, não é passada nenhuma ideia de ação violenta por parte dos Estados Unidos nessa operação. Desde o começo é uma ação muito pacífica: infiltrar uma mulher em um ciclo de nazistas para conseguir informações por meio de seus charmes. Em nenhum momento representam os agentes estadunidenses como pessoas violentas que matariam alguém para alcançar seus objetivos, essa é a forma que os nazistas são representados. Sendo que na realidade, sabemos que os dois lados estariam usando de todos os meios possíveis para alcançar seus objetivos políticos e militares. Porém, era importante para Hollywood e a política dos Estados Unidos, representar e criar uma cultura de boas aparências e bons costumes “americanos” atrelada a cultura deles. Tudo o que fosse estrangeiro em seus filmes poderia ter falhas de caráter, como violência e ignorância, enquanto eles representariam tudo o que fosse correto, bom e belo.

Essa propaganda política e cultural, presente nesse filme com Ingrid Bergman, se voltaria contra ela alguns anos no futuro, em 1950, quando se afasta de Hollywood, vai gravar um filme neo-realista italiano e se apaixona pelo diretor. Ela era na época uma mulher casada, com uma filha e vista até o momento como uma jóia pura, por muitos, comparada as virtudes de personagens de sua filmografia como a Irmã Mary Benedict em Os Sinos de Santa Maria (1945) e Joana d’Arc em Joana d’Arc (1948). Dessa forma, o escândalo de sua vida pessoal foi o suficiente para fazer com que pessoas que antes a viam como um ideal de pureza a condenarem como se fosse um ser maligno em corpo de mulher. Em nenhum momento a vendo como uma pessoa de fato, mas uma representação política do certo e errado na cultura estadunidense. Assim, foi fácil anunciar que ela, uma atriz estrangeira, seria exilada e não poderia nunca mais voltar a Hollywood, por não conseguir seguir os bons costumes “americanos”. Do mesmo modo, foi fácil para ela aceitar essa sentença já que não queria mais fazer filmes estadunidenses, se interessando cada vez mais pelo cinema europeu, e não tinha motivos para retornar ao seu antigo casamento, pois fontes alegam que a união estava quebrada muito antes dela ter um romance com Roberto Rossellini. Dessa forma, a atriz Ingrid Bergman rompe suas relações com a propaganda cultural que antes sustentava e rodeava sua carreira.

Concluo que, apesar de seu caráter de propaganda política, Interlúdio entra na lista de um dos meus filmes favoritos de Hitchcock. Afinal, é incrível perceber, tendo conhecimento de como eram produzidos muitos dos filmes da época, a importância que realizadores como ele tiveram para a criação de uma linguagem cinematográfica que deve ser estabelecida desde o roteiro até o tratamento final do som. A forma que Interlúdio nos prende do início ao fim é magnífico. Mesmo sendo um filme de história simples, consegue criar visualmente e sonoramente uma obra repleta de detalhes muito bem trabalhados pela direção. Para quem quiser assistir e ficar na ponta da cadeira acompanhando a história de Alicia e Devlin, o filme está disponível no streaming Looke.


Filme: Notorious (Interlúdio).
Elenco: Ingrid Bergman e Cary Grant.
Direção: Alfred Hitchcock.
Roteiro: Alfred Hitchcock, Ben Hecht e John Taintor Foote.
Produção: Estados Unidos.
Ano: 1946.
Gênero: Drama, Romance, Suspense e Filme Noir.
Sinopse: Uma mulher é chamada para espionar um grupo de amigos nazistas na América do Sul. Até onde ela terá que ir para se integrar com eles?
Classificação: Não disponível.
Distribuidor: RKO Radio Pictures.
Streaming: Looke.
Nota: 9,0.

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