CRÍTICA – O PIANO

CRÍTICA – O PIANO

Em 2022, Jane Campion se tornou apenas a terceira mulher a conquistar um Oscar na categoria de Melhor Direção pelo seu excelente trabalho em Ataque dos Cães e a única a ser indicada duas vezes. Quase 20 anos deste feito, Campion já havia quebrado diversas barreiras sexistas da indústria cinematográfica com O Piano, ao se tornar a primeira diretora a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, fora outros diversos prêmios e reconhecimento que este clássico atemporal teve e tem até hoje.

Posto isso, O Piano se torna um filme ainda mais significativo se pararmos para pensar na justaposição de sua temática com o que ele representa na carreira da diretora e da indústria. O longa de 1993 é ambientado no Século 18 e centra-se em Ada (Holly Hunter), uma mulher muda que é enviada com todos os seus pertences da Escócia para a Nova Zelândia com sua filha mais nova (Anna Paquin) para se casar de forma arranjada com Alisdair Stewart (Sam Neil), um colonizador inglês. Campion propõe a partir desse contexto discutir através de símbolos e metáforas a experiência de uma mulher em busca de sua voz num mundo patriarcal. 

Dentre todos os seus objetos com os quais ela viaja, o piano é certamente o mais importante de todos. O cinematógrafo Stuart Dryburgh faz um trabalho excepcional nos primeiros minutos de filme ao criar imagens lindas que reforçam a importância do instrumento musical. Ele não é apenas um hobbie ou um objeto de valor, existe algo humano atuando nele que o torna quase como um personagem. O piano é uma forma de se expressar e de se conectar, através da música, com a sua filha que se diverte e dança ao som das doces notas do piano.

Depois de cruzar florestas e pântanos, Stewart finalmente conhece a sua futura esposa e Flora. Desde o início já fica claro que Ada não simpatizou com seu marido. Sentimento que piora quando ele se recusa a levar o piano, abandonando-o na praia. Assim, Ada passa a rejeitar qualquer toque ou “sinal de afeto” de Stewart e tenta a todo custo se reunir com o piano deixado na praia. Convencida de que Alisdair não liga para os seus sentimentos, ela decide ir atrás de George Baines (Harvey Keitel), um marinheiro inglês aposentado e adepto dos costumes maori, para levar ela até a praia. Após certa resistência, ele aceita e acaba se apaixonando por Ada ao vê-la tocar piano.

Quando Baines pega o piano para si, ele negocia com Stewart para que Ada ensine-o a tocar piano. Com o passar das aulas, esses encontros se tornam cada vez mais íntimos, ainda que com certa resistência por parte da personagem de Hunter. Contudo, na medida que o tempo passa, Ada continua impedindo os avanços físicos e sexuais de Alisdair enquanto explora a sua sensualidade e intimidade com George nesse romance proibido — descobrindo o verdadeiro amor.

É a partir dessa problemática que Campion constrói as suas metáforas envoltas do que o piano enquanto ferramenta empoderadora e de liberdade representa. A diretora em nenhum momento abandona a sua visão, trabalhando os seus subtextos nessa história de interesses carnais. Ainda que seu olhar seja essencial para que a história saísse da mesmice e do clichê do romance dos desafortunados, é Holly Hunter que torna tudo crível. A sua performance oscarizada diz muito mesmo sem uma linha de diálogo. Os seus trejeitos, gestos, olhares, pequenas expressões e a maneira que se comunica em libras dizem muito sem precisar de palavras para tal. Paquin como sua filha e intérprete entrega cenas difíceis e uma personagem complexa com apenas 12 anos; o que ela faz em algumas passagens beira o assustador, foi tão impressionante que conquistou os votantes da Academia e também venceu o Oscar pela sua interpretação.

Campion brilha novamente ao dirigir tão bem essas duas atrizes e ao tornar O Piano um filme muito bem estruturado que funciona como um organismo único, com muita clareza onde quer chegar: fazer com que sua protagonista seja, enfim, ouvida e seus sentimentos respeitados. Ela, em meio a um ambiente machista como o cinema e principalmente as grandes premiações, entende mais do que ninguém a importância da sua história e dela ter êxito enquanto narrativa. O seu sucesso fez com que a temática de O Piano se expandisse para além das telas e se tornasse muito maior do que almejava ser.

Terminar um filme sempre é uma tarefa árdua para o diretor, pois precisa ser memorável e refletir a qualidade de sua história (muitas vezes o final é até mesmo capaz de salvar um filme). Felizmente que o que vemos aqui é poesia em seu estado mais puro, de uma sensibilidade sem igual, amarrando todo o seu discurso num monólogo impactante e com uma cena final difícil de esquecer e impossível não pensar nos seus significados.


Filme: The Piano (O Piano)
Elenco: Holly Hunter, Anna Paquin, Harvey Kietel, Sam Neill, Kerry Walker, Genevieve Lemon
Direção: Jane Campion
Roteiro: Jane Campion
Produção: Austrália, França e Nova Zelândia
Ano: 1993
Gênero: Romance | Drama
Sinopse: A esposa de um colonizador ensina seu amante a tocar piano na Nova Zelândia colonial.
Classificação: 16 anos
Distribuição: Filmicca 
Streaming: Filmicca
Nota: 9,0

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