CRÍTICA – RYUICHI SAKAMOTO: CODA

CRÍTICA – RYUICHI SAKAMOTO: CODA

Ryuichi Sakamoto, um dos maiores compositores e músicos dos últimos tempos, faleceu de câncer no dia 28 de março de 2023. Seu legado vasto deixado para trás se estende através da música e do cinema em suas diversas composições. No documentário Ryuichi Sakamoto: Coda, de 2017, é retratado em um momento recente de sua vida, pouco tempo após a descoberta de seu câncer. E através de íntimas cenas de sua rotina e imagens de arquivo recontando suas histórias, o longa pinta o quadro de um homem em uma busca profunda pela eternidade através da arte e a sonoridade dos sentimentos humanos.

O filme começa com a visita de Sakamoto a um local recentemente atingido por um tsunami no Japão, onde há um piano que sobreviveu ao desastre. A equipe do documentário o acompanha, mas não há sequer entrevistador. A câmera dá todo o foco ao artista e se integra ao seu cotidiano e às suas buscas de forma intimista. O piano está intacto, porém totalmente danificado por dentro devido a inundação. Seu desejo é descobrir qual é o som desse instrumento atingido pela catástrofe. E para saciar sua curiosidade pelos sons mais singulares, está disposto a ir aos lugares mais remotos. O que ele descobre é apenas um piano danificado. Para ele, é como tocar a carcaça de um instrumento morto. Um aparelho defeituoso, mas cuja história que o precede o revestem de um significado muito mais profundo. É assim que Sakamoto enxerga o mundo através da música, e desse modo, reflete os sentimentos do mundo e os seus próprios na sua obra. 

 Na rotina dos remédios e ensaios em casa, vemos um músico sereno e focado. Em nenhum momento demonstra desespero ou preocupação e sorri ao falar sobre o osso morto em sua boca enquanto escova os dentes. Seu semblante tranquilo transmite um entendimento amadurecido de sua situação e suas palavras assertivas, cheias de encantamento pela vida, confirmam uma sabedoria que supera a mortalidade. Ao mesmo passo que ele contempla a iminência de sua morte e transfere esse sentimento em suas composições, ele declara, através do seu enorme conhecimento musical, uma noção superior sobre o tempo e a finitude. Mais do que nunca, o seu desejo é fazer música e estar presente no mundo, um dia após o outro. Em nenhum momento pensou em rejeitar a composição da trilha sonora de O Regresso (The Revenant, 2015) para Alejandro G. Iñárritu, ou interromper a produção e a pesquisa de seu novo álbum. Fascinado pela ideia de um som perpétuo, que, diferente das notas de piano que se prolongam e terminam, permaneça tocando até a infinidade, Sakamoto se entende como a sonoridade que se estende até a última nota.

Durante sua prolífica carreira, que começa em 1978 com seu álbum de estreia “Thousand Knives”, se destacou rapidamente e participou de inúmeras colaborações com figuras importantes da música e do cinema. Sua posição no trio Yellow Magic Orchestra ao lado de grandes nomes como Haruomi Hosono e Yukihiro Takahashi, que também veio ao óbito em 2023, o consolidou ainda mais na música japonesa e mundial. O seu contato com o cinema, porém, começa em 1983 ao trabalhar como ator e compositor em Furyo, em nome da honra (Merry Christmas, Mr. Lawrence, 1983) de Nagisa Oshima. Desde então, sua presença na composição de filmes se tornou uma constante, trabalhando ao lado de diretores como Bernardo Bertolucci, Brian De Palma, Pedro Almodóvar, Takashi Miike, Luca Guadagnino, dentre outros. No documentário de 2017, Sakamoto trabalhava no álbum “Async”, uma ideia que surge de sua obsessão pelos filmes de Andrei Tarkovsky. Para ele, um cineasta que faz música com suas obras e sempre apresenta complexos ambientes sonoros. 

Assim como o diretor de Solaris (Solyaris, 1972), que em seus filmes de temporalidade flexível trabalha com frequência sobre as consequências da guerra e catástrofes nucleares, Sakamoto teve sua vida e arte profundamente ligada às questões do mundo. Vindo de uma geração marcada pelo trauma geracional do final da segunda guerra mundial, ele faz parte de uma gama de artistas que, durante o final dos 1970 para a década de 1980, observavam atentamente o crescimento econômico explosivo do país como potência capitalista. Na sua música e estética, ocasionalmente iconoclasta, refletem temas de preocupação com o avanço da industrialização e das guerras. Para ele, não interessa um retorno a um modo de vida pré-moderno, mas sim observar a erosão da tecnologia, ou seja, a sua decadência em tempos turbulentos e acelerados. Na sua obra, ele costuma trabalhar na sonoridade dos ruídos e erros apresentados por essa decadência tecnológica. Movimento que faz parte de sua veia vanguardista e experimental, mas também carrega um significado maior.

No documentário, acompanhamos o músico em diversos cenários de desastres ambientais e humanos. Após a catástrofe nuclear em Fukushima, ele se empenhou cada vez mais ativamente na causa ambiental e antinuclear. As mensagens de paz e reflexões sobre as disparidades, assimetrias e contradições do mundo moderno permeiam constantemente sua obra e sua vida. Em um momento tão crítico para o compositor, a sua arte transparece um grande sentimento de melancolia. Tanto para ele, quanto suas inspirações, de Bach à Tarkovsky, o sentimento humano canalizado para a arte é o que move as obras mais poderosas. E essa dor, para um artista no final da vida, não está apenas na face de sua morte, mas nas tragédias do mundo que tanto o encanta. Para Sakamoto, os artistas tendem a sentir as coisas antes delas acontecerem, “como os canários em uma mina de carvão”. Em sua enorme sensibilidade, a finitude da humanidade é mais sentida do que a sua própria, e por isso, permanece em busca de um som perpétuo. Uma sonoridade pura e infinita, como o legado de um artista completo que ressoa em uma nota constante através da eternidade.

Filme: Ryuichi Sakamoto: Coda
Elenco: Ryuichi Sakamoto
Direção: Stephen Nomura Schible
Roteiro: Stephen Nomura Schible
Produção: Japão/ EUA
Ano: 2017
Gênero: Documentário/musical
Sinopse: Um dos mais importantes artistas conteporâneos, Ryuichi Sakamoto estabeleceu carreira prolífica que cobre mais de quatro décadas, da atuação como ator à condição de compositor de trilhas sonoras vencedoras do Oscar. A evolução de sua música coincidiu com jornadas pessoais. Após o desastre de Fukushima, Sakamoto tornou-se figura icônica no movimento surgido no Japão contra o uso de energia nuclear. Quando voltou à música, depois de tratar de um câncer, sua assombrosa consciência da vida inspirou nova obra-prima musical. Este documentário é um retrato íntimo do artista e do homem. ​​
Classificação: 14 anos
Streaming: Indisponível
Nota: 9,0

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