CRÍTICA – VOCÊ NUNCA ESTEVE REALMENTE AQUI

CRÍTICA – VOCÊ NUNCA ESTEVE REALMENTE AQUI

Olhar para a sinopse de Você Nunca Esteve Realmente Aqui talvez dê a impressão de algo batido, apenas outro filme de resgate com a ação e o suspense característicos de um subgênero policial. Joe, interpretado por Joaquin Phoenix, é um veterano de guerra traumatizado, que agora trabalha resgatando garotas desaparecidas, sendo uma espécie de assassino de aluguel com princípios, mas cuja complexidade não é resumida à clássica figura de justiceiro que faz as coisas certas por meios questionáveis.

Desde o início a figura de Joe é bastante ambígua e intrigante, não fica claro pela montagem dos primeiros planos o que ele estava fazendo, mas cria-se a primeira impressão de alguém cruel, frio e extremo, que é contrastada na sequência posterior com ele sendo afetuoso e preocupado com sua mãe idosa. Ao decorrer do filme vemos rápidos flashes das memórias de Joe, que acentuam os mistérios e dúvidas sobre o personagem, estes lapsos de lembrança às vezes se confundem com a realidade como se fossem devaneios perturbadores, nos lembrando, assim, do estado mental do protagonista, que nunca está realmente aqui, no tempo presente e espaço em que se encontra.

Joe tenta estar aqui e agora em diversos momentos do filme, seja usando um saco plástico, uma toalha ou uma música do alfabeto, tudo para tentar não pensar em nada por alguns instantes, para não estar consumido pelo passado asfixiante, ele se sufoca com intuito de autopunição e alívio, também usa de outros rituais advindos de sua infância traumática, buscando se desviar de suas memórias na guerra e no serviço de espionagem que ecoam nos seus medos do presente. Afinal, carregar tantos traumas é ter memórias pesadas demais para se manter na superfície do agora.

Como na vívida cena em que ele leva um corpo para ser desovado em um lago num lindo dia ensolarado, logo após acumular mais um trauma, ele se deixa afundar junto com o cadáver e ao contar regressivamente, na falta de ar de baixo d’água, ele tenta brevemente se dissociar do presente nessa cena que parece tão ritual, como enterro ou batismo. Esse e outros momentos do filme mostram como o foco não está nos momentos de combate, ação e violência, mas no que vêm depois deles, aquilo que fica depois de tudo, como as cicatrizes de Joe.

Durante as cenas de ação, os planos são enquadrados para ocultar a violência, muitas vezes não mostrando o alvo sendo atingido ou mostrando de uma visão distante e aleatória como a das câmeras de segurança em uma das sequências mais marcantes do filme. Com isso, a diretora Lynne Ramsay não deixa o filme menos gráfico, haja vista as cenas com pessoas extremamente feridas e mutiladas, ela apenas opta por dar o foco às consequências da violência e não à agressão em si. 

Além disso, privilegiando esses momentos consequentes e anteriores, Ramsay escolhe representá-los com uma fotografia reluzente, nunca sombria, seja em cenas solares ou em leds e neons que dão cor à noite, com isso, reforça-se um ar realista e cotidiano na figura de Joe, que não é um personagem criado para ser lembrado como o anti herói que resgata meninas sequestradas matando vilões com seu martelo, e sim como um ser humano traumatizado pela violência e que vive praticando ela, talvez por saber que ele é o tipo de pessoa que seu trabalho precisa ou por apenas não conseguir se livrar da presença dessa prática. 

Aqui não temos um clássico filme policial que busca planos escuros para dar uma atmosfera séria e perigosa, tal atmosfera já se cria facilmente pela montagem fragmentada de flashes, junto a atuação e expressão corporal incerta de Joaquin Phoenix, que nos intriga e surpreende nas reações que Joe tem aos acontecimentos do filme. Além disso, o roteiro contribui para tal atmosfera, mas com seus muitos mistérios, fatos subentendidos e recortes do passado frustra ao criar a expectativa de que eles seriam aprofundados, deixando muito mais do que só pontas soltas.

Assim, a personagem de Joe não atinge a profundidade e conexão que inicialmente prometia. Talvez, para alguns, o drama interno de poucas falas, atrelado a elementos imagéticos simbólicos da narrativa, funcione bem para aprofundar a personagem sem precisar de um roteiro mais extenso e complexo. Mas nesse caso, para a personagem de Joe, na qual todo o filme gira em torno, escolher um roteiro tão breve e despreocupado parece dizer, ao mesmo tempo, que esta pessoa não tem tanta importância e sim que o foco do filme é um discurso sobre consequências da violência e trauma, algo que, se fosse o caso, não faria sentido ter escolhido uma abordagem tão específica para um discurso bem mais amplo. E não é como se o filme não tivesse tempo para isso, afinal ele não tem nem 90 minutos de duração.

Dessa forma Lynne Ramsay inova o gênero policial, extrapolando ele numa área cinza do drama psicológico, do suspense e da ação, optando por uma abordagem de enfoque humano e realista, sem idealizações de figuras, que mesmo marcantes e peculiares não chegam a ser heroicizadas, buscando um discurso mais amplo sobre o trauma e a violência, mais amplo até do que sua concisa e opaca estrutura narrativa pode sustentar. Assim, Você Nunca Esteve Realmente Aqui impressiona e decepciona, finalizando com muitas faltas mas de maneira à altura do título, com um lindo dia de sol, em que em vez de fugir, de ir para algum outro lugar, Joe possa apenas estar aqui e agora.


Filme: You Were Never Really Here (Você Nunca Esteve Realmente Aqui)
Elenco: Joaquin Phoenix, Judith Roberts, Akaterina Samsonov
Direção: Lynne Ramsay
Roteiro: Lynne Ramsay, Jonathan Ames
Produção: Reino Unido, França, Estados Unidos
Ano: 2017
Gênero: Drama, Suspense, Policial
Sinopse: Um veterano traumatizado, sem medo de violência, resgata garotas desaparecidas para ganhar a vida. Quando um trabalho não funciona de acordo com o planejado, seus pesadelos o dominam enquanto descobre uma conspiração que pode levar tanto a sua morte quanto a seu despertar.
Classificação: 16 anos
Distribuidor: Supo Mungam Films
Streaming: FILMICCA
Nota: 7,2

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