Cobertura Festival do Rio | Mato Seco em Chamas, de Adirley Queirós e Joana Pimenta

Cobertura Festival do Rio | Mato Seco em Chamas, de Adirley Queirós e Joana Pimenta

“O filme tem muito a ver com o que estávamos pensando no Brasil daquele momento […] O texto inicial do filme trabalha muito essa ideia da promessa do pré-sal. ‘E se o petróleo fosse nosso?’ […] É uma questão gramatical: ‘e se o petróleo fosse mesmo popular?’ Se ele fosse popular era ‘de nós’, não era ‘nosso’.”  – Adirley Queirós, codiretor de Mato Seco em chamas durante o debate que acompanhou a exibição no Festival do rio.

Mato Seco em Chamas (2022) é um longa-metragem que mescla ficção e documentário, dirigido por Adirley Queirós e Joana Pimenta. Após acumular seis prêmios e uma nomeação internacionais, foi premiado com a melhor fotografia e o prêmio especial do Júri da mostra Première Brasil, no 24º Festival do Rio. O filme foi exibido no último dia 15/10 no cine Odeon, acompanhado de um debate com realizadores e as atrizes que deram vida às suas próprias histórias.

A obra começou sua produção em 2017 e desde então acompanhou e reagiu diretamente aos acontecimentos políticos que ocorreram durante as gravações. A exemplo da vitória da extrema direita nas eleições de 2018 e a intensificação do policiamento e da guerra às drogas, que invadem e moldam a realidade do filme. Assim, a narrativa ficcionalizada das histórias de vida reais das protagonistas se conecta a um contexto maior, uma conjuntura que afeta em todos os níveis a vida dos moradores da quebrada do Sol Nascente, na Ceilândia-DF. A realidade que atravessa o tempo todo a ficção e vice-versa são marcas registradas de seus diretores, especialmente Adirley Queirós, diretor de ‘Branco sai, preto fica’ (2014).

As atrizes que encenam e recontam suas experiências são ex-presidiárias da Colméia, prisão feminina do Distrito Federal, que movimentaram o crime organizado na região. Na narrativa, a gangue, liderada por Chitara, encontra petróleo, dando início a atividades clandestinas em acordo com os motoboys da cidade. Elas alternam, junto ao filme, entre a ficção roteirizada, que evoca uma estética distópica com armas e motocicletas no cenário árido do cerrado, e o relato documental. A partir da quebra com o artifício da narrativa, a presença da câmera e o diálogo com o momento político atual se caracteriza uma obra que olha de volta para o espectador. Ao mesmo passo, o convida à imersão através de uma belíssima fotografia com planos longos e atmosféricos dos plantões noturnos, dos movimentos das esquinas, casas de show, fábricas e igrejas evangélicas.

O título provoca significações diversas. O mato seco em chamas é o incêndio sobre a terra arrasada, é o retrato de um país em crise, das margens abandonadas e bombardeadas, é o fogo da pólvora e da gasolina, e são os incontáveis cigarros queimando aos estalos do tabaco chamuscado. Das tensões políticas que incendeiam o contexto do crime e violência policial se dissipam nuvens de fumaça, revelando uma história de protagonismo feminino e direitos da população encarcerada. Acima de tudo, narrado e performado pelas donas da narrativa, mas, também, um filme preocupado com a disputa de uma linguagem popular.

Durante o debate, Adirley dispara: “Se a gente não entende que a gente tá perdendo na linguagem, a gente não entende nada”. O diretor defende a linguagem do povo, gírias, fortes sotaques e música. O funk, o brega, a música romântica e o gospel orquestram a paisagem sonora do longa que, nas suas palavras, revelam muito sobre a cidade e sobre nós. Mas também contrariam o que ele classifica como um “bom gosto hierárquico e violento que temos em relação a musicalidade” e que “já cataloga a gente pelas músicas”. Primeiramente, ele afirma: “são as músicas que eu ouço”. Existe nessas escolhas musicais uma função atmosférica e “daquilo que a gente gosta de ver no cinema”. Assim, o que interessa nessa sonoridade é o sentimento que ela produz. Dessa forma, os realizadores justificam também a representação dos louvores da igreja evangélica presentes no filme.

Na cena da igreja, acompanhamos por alguns minutos a atriz e personagem Andreia Vieira no culto. As famílias oram e cantam de olhos fechados, mas as crianças não evitam olhar e perceber a câmera filmando. Para a diretora Joana Pimenta: “Uma coisa que nos incomodava muito é a forma como os evangélicos são representados no cinema brasileiro, quase sempre como uma caricatura, uma anedota. A galera nem entra na igreja, filma sempre da porta”. É se colocando no lugar de um setor progressista desconectado da língua do povo que os diretores analisam o profundo erro neste distanciamento.

“Na cena da igreja, o que interessava pra gente era a musicalidade de um povo sofrido. Em geral, um povo pária. Porque nós estamos falando de um lugar em que as pessoas estão à margem da margem e se identificam com aquele sentimento da música”, explica Adirley.

Da mesma forma que a câmera não teme adentrar na manifestação pró-Bolsonaro para revelar o rosto de seus adversários em uma das cenas do filme, teme muito menos o diálogo com aquilo que mobiliza os sentimentos do povo marginalizado. São contradições que precisam ser lidadas com respeito, como continua o diretor:

“a gente tá filmando na cidade da Michelle Bolsonaro, ali é onde ela nasceu. É uma contradição mesmo, a Michelle Bolsonaro é uma mulher de quebrada. Então a gente tá cheio de contradição assim. E não dá pra chegar e só apontar o dedo e dizer ‘que é isso, que é aquilo’, tem muito mais coisa no meio, sabe?”

Por fim, as atrizes Joana Darc Furtado, Andreia Vieira e Léa Alves deram seus depoimentos e contaram suas experiências sob uma chuva de aplausos no cine Odeon. Suas poderosas e autênticas atuações mobilizaram o público do Festival do Rio. E não à toa, o filme volta para a Ceilândia com duas premiações.

Filme:  Mato Seco em Chamas
Elenco:
 Joana Darc Furtado, Andreia Vieira, Gleide Firmino, Léa Alves e Mara Alves.
Direção:
 Adirley Queirós e Joana Pimenta.
Roteiro:
 Adirley Queirós e Joana Pimenta.
Produção:
 Brasil/Portugal
Ano:
 2022
Gênero:
 Drama, Documentário.
Sinopse:
 Léa conta a história das Gasolineiras de Kebradas, tal como ecoa pelas paredes da Colméia, a Prisão Feminina de Brasília, Distrito Federal, Brasil.
Classificação:
 18 anos
Distribuidor:
 Vitrine Filmes
Streaming:
 Indisponível
Nota:
8.5

Sobre o Autor

Share

One thought on “Cobertura Festival do Rio | Mato Seco em Chamas, de Adirley Queirós e Joana Pimenta

  1. Muito interessante a narrativa do filme Mato seco em chamas, já estou louca pra ver. Como sempre Pedro Augusto escrevendo brilhantemente!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *