TRANSVERSAIS

TRANSVERSAIS

– FILME EXIBIDO NO 29º FESTIVAL MIXBRASIL (2021) –

Quem não é visto não é lembrado. Por isso a importância de termos no cinema uma preocupação, sobretudo aqui no Brasil, com a representatividade. Vivemos em um momento de retrocesso em um amplo sentido, muito por conta daquele que preside nosso País, mas é um alento percebermos que autores, diretores, produtoras, atores e atrizes estão juntos – mesmo contra todo tipo de censura – fazendo do cinema nacional um potente megafone conseguindo, assim, fazer a mensagem chegar longe.

Atualmente diversos filmes brasileiros com temática LGBT foram largamente premiados como são os casos de Bixa Travesty (2018) – um documentário sobre Linn da Quebrada – e do longa ficcional Alice Júnior (2019), protagonizado por uma atriz trans, Anne Mota, sendo ela a primeira mulher trans a ganhar o prêmio de melhor atriz no festival de cinema de Brasília, feito conseguido com este filme.

Entretanto essa qualidade e diversidade já comprovadas do nosso cinema de nada valeu para o presidente atual que, de forma autoritária e preconceituosa – características que não podem nunca estar vinculadas a alguém que ocupe um cargo de tamanha importância em qualquer país –, barrou diversos filmes com a temática LGBT em editais que visavam o aporte financeiro para a viabilização da produção destes filmes.

“É um dinheiro jogado fora. Não tem cabimento fazer um filme com esse tema”. – Jair Bolsonaro (Live realizada em 2019)

Mas se tem uma palavra que define bem o cinema nacional é RESISTÊNCIA. Não é de hoje que o nosso cinema luta arduamente contra a censura, o boicote e as mais variadas adversidades. E foi exatamente o que aconteceu com o longa documental, dirigido por Émerson Maranhão, Transversais (2021). Mesmo com todo o maquinário público tentando minar a realização desse projeto, Maranhão seguiu firme e a ideia inicial de uma série de 5 episódios se tornou um belíssimo documentário que nos mostra um pouco das trajetórias de luta de 5 pessoas trans no Ceará.

“Essa questão da censura nos fez ter mais gana e determinação para levar a história para as telas.” – Émerson Maranhão.

E se o filme recebeu vários tipos de ataque, principalmente, através das redes sociais, por uma parcela da sociedade que é conservadora e atrasada, o contra-ataque de Maranhão se faz já no primeiro minuto. Com a tela ainda preta, o texto que aparece já é o suficiente para fazer qualquer um cair na realidade violenta do Brasil.

“175 pessoas trans foram mortas no Brasil em 2020. Uma a cada 2 dias”.

Por mais que a câmera de Maranhão esteja interessada em, através de um olhar leve e terno, saber mais sobre aquelas 5 pessoas, é impossível não perceber a dor de cada um ali. Por mais que a tônica do longa seja celebrar as conquistas, o olhar de cada um entrega todo o sofrimento que já passaram e ainda passam. Fica claro, através dos seus depoimentos, que mesmo sendo aceitos por uma parcela da sociedade, ainda há momentos de constrangimento ocorrendo, até mesmo, dentro da própria família, como são os casos de Samila e Kaio Lemos. Estes possuem mães que não os aceitam em sua totalidade. Insistem em dizer que é algo errado e o pior, insistem em chama-los pelo antigo nome, remetendo a uma orientação que eles nunca se sentiram pertencentes.

Pertencimento, a obra trata disso. A busca pelo sentimento de pertencer a si mesmo. Olhar para um espelho e ver a figura de um homem, como diz o paramédico Caio José, não tem preço, ali fica nítida a mais pura e genuína felicidade.

Érika Alcântara, Samila Aires, Kaio Lemos, Lara Mendes e Caio José, 5 pessoas distintas e ao mesmo tempo com muito em comum. Uma infância lutando contra os padrões, sofrendo preconceito e só encontrando segurança no total isolamento. Essa é a realidade de muitos garotos e garotas trans Brasil afora e é por isso que um documentário como esse é de grande importância. Mostra que, mesmo com muitos percalços, alguns passos já foram dados e que a luta continua firme, resistindo.

Esse olhar positivista e esperançoso pode não interagir com aqueles mais calejados, entretanto é mais do que válida a mensagem, principalmente para todas as pessoas que se encontram invisibilizadas seja pela família ou pela sociedade de um modo geral. Fazer um filme que as representem e que forneça informações sobre movimentos, grupos e leis é um grande desafio e este foi, sem dúvidas, um dos objetivos atingidos pelo longa.

Entretanto algo que incomoda neste documentário é a inserção de depoimentos de amigos e familiares – cisgêneros e heterossexuais –, pertencentes ao padrão ditado pela sociedade, como se a aceitação e os elogios que eles fazem fossem a grande validação da normalidade que as pessoas trans precisam. Além disso o foco dado a religiosidade de Kaio Lemos também deixa um pouco de lado o que de fato importa. A tentativa de explorar as permissividades de centros religiosos é completamente sem sucesso. No caso de Kaio, ele foi aceito em uma casa de Candomblé, mas mesmo dentro dessa mesma religião há outras tantas casas que não o aceitariam. Ou seja, a falta de profundidade desse tema e o fato de não chegar a lugar algum nessa linha desenvolvida leva o filme a uma rua sem saída. Momentos como estes destoam um pouco do argumento do filme, mas o documentário se mostra extremamente responsável na maneira como dá voz aos 5 protagonistas.

Ao fim, saber que Érika Alcântara é uma professora de matemática, Samila é uma funcionária pública, Kaio Lemos é um antropólogo, Caio José é um enfermeiro e Lara Mendes, uma adolescente que tem pais extremamente inseridos na causa pelos direitos de pessoas trans, mostra que é essa inclusão que deve ser buscada sempre e que filmes assim precisam chegar a mais pessoas.

Transversais é um filme obrigatório para todos.


Filme: Transversais
Elenco: Caio José Batista, Érikah Alcântara, Kaio Lemos, Mara Beatriz, Samilla Marques Aires, Clotilde Batista Da Silva, Edivane Barros, Jânio Torres, José Rogério Franklin, Lara Mendes, Pai Aluísio, Priscila Marques, Priscila Paula Pessoa, Rozelangia de Paula Pessoa
Direção: Émerson Maranhão
Roteiro: Émerson Maranhão
Produção: Brasil
Ano: 2021
Gênero: Documentário
Sinopse: Uma investigação do cotidiano, das dificuldades e dos sonhos de cinco pessoas transgêneros que moram no Ceará, no Nordeste brasileiro. O filme é uma adaptação da série de TV homônima, censurada pelo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, numa transmissão ao vivo nas redes sociais, em agosto de 2019.
Classificação: 14 anos
Streaming: Não Disponível
Nota: 8,0

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