CRÍTICA – AMANHÃ

CRÍTICA – AMANHÃ

A princípio, os grãos ao redor da imagem indicam que a película dirigida por Marcos Pimentel está estabelecendo um diálogo com registros do passado. Enquanto a câmera mantém um contato observativo e intuitivo, crianças correm ao redor do enquadramento, e a lente tenta segui-las. No entanto, o manuseio da máquina não é espontâneo, ao contrário das crianças que se movimentam como se aquele elemento de observação não existisse. Em certos momentos, elas até mesmo se apresentam diante daquele objeto gigante, assemelhando-se a um palco televisivo, mas sempre carregando consigo fragmentos de identidade em seus gestos e diálogos. Além disso, enquanto elas brincam para impressionar algo ou alguém, o plano de fundo revela recintos periféricos constantemente em processo de construção e reconstrução ao longo da história. Após um período de registros espontâneos, onde a autenticidade do amadurecimento prevalece, somos transportados para 20 anos depois, no mesmo local, entretanto, em um Brasil diferente, com pessoas diferentes. Amanhã

O documentário “Amanhã” (2024) revisita registros de 20 anos atrás, em 2002, para abordar o contínuo conflito territorial brasileiro. Ao longo do filme, acompanhamos três crianças filmadas anteriormente. Dois desses indivíduos cresceram naquela localidade, enquanto a terceira criança, pertencente a uma classe social diferente, participou das filmagens em um fim de semana tranquilo, onde os únicos contratempos eram os pés sujos de terra. No entanto, percebe-se que seu rosto, quando filmado, assume outro significado; parece que aquele registro tem um impacto positivo para ele de alguma forma, mesmo sem ter culpa de sua posição diante da câmera. Uma imagem dele pode se tornar manchete, enquanto os outros também podem ser apresentados em uma matéria de televisão, dependendo do horário do programa e como seus corpos estão expostos 

A primeira personagem, Júlia, continua vivendo na mesma região de sua infância, e ao subestimamos o filme em busca de momentos espontâneos perdidos após aquela sequência inicial, ela resgata esse sentimento com sua presença. As antigas imagens do diretor são transmitidas para assisti-la, e a câmera ocupando um espaço sensível de um close-up no rosto da mulher, que continua com laços da sua infância; presentemente, em um close-up, ela sorri, com lágrimas nos olhos, e relembra o quão boa era aquela época. Podemos interpretar isso como uma romantização popular do passado, mas quando se trata de corpos periféricos, a inocência da infância é memorável. Em meio às mudanças que ocorrem nessas localidades, Júlia menciona o caso de sua antiga casa demolida. Ao assistir e se observar naquele aparelho televisivo, Júlia percebe que sua história está de alguma forma viva naqueles arquivos que mostram crianças aproveitando e ocupando os dias banais. 

Em um intervalo entre as sequências, Marcos Pimentel escolhe registrar os personagens em seus momentos na cama, prestes a dormir para encarar outro dia. Essa decisão de enquadrar algo aparentemente sem conflito também nos oferece um vislumbre dos momentos de pausa capturados pela câmera, onde eles, as caricaturas presentes no documentário, sonham com situações melhores. Apesar de expressarem momentos difíceis ao longo da obra, os personagens sonham possivelmente com aspectos positivos para que envolvem o tempo e a ausência de barreira invisíveis que os controlam. 

Os personagens principais, Julia e Cristian, conseguem transpor a barreira invisível que a presença da câmera muitas vezes cria nos momentos íntimos. Quando Cristian é liberto da prisão, a câmera se aproxima do abraço dos irmãos, mas mesmo que se movimente de forma ‘’chamativa’’, não interfere nos laços de afeto. Mesmo quando discutem sobre política e expressam suas opiniões sobre o Partido dos Trabalhadores (PT), obviamente, há uma delicadeza na exposição de suas falas, mas, sem que isso os leve a assumir uma identidade que não seja a deles. Eles afirmam em diferentes momentos que o documentário não é sobre eles, que são apenas figurantes diante daquela realidade, contudo, ao mesmo tempo, suas histórias e experiências durante os 20 anos de transição do Brasil os colocam inadvertidamente como protagonistas.

Marcos Pimentel intercala sua voz de maneira didática para contextualizar alguns eventos das duas décadas. Zé Thomaz, o garoto rico do início das filmagens, escolhe o silêncio e não participa ativamente das criações imagéticas e sonoras da obra. Essa distância gera um desconforto entre os protagonistas, que ficam ambíguos sobre o tipo de pessoa que Zé Thomaz se tornou. Um garoto que até tenha havia pisado na mesma lama que os indivíduos, opta por se calar devido à ‘’polarização política’’.

O aparecimento e desaparecimento dos personagens são comentados por Marcos Pimentel, que agora assume uma figura de controle narrativo entre as imagens, a voz e a montagem. Mesmo que o filme caminhe para uma nova tragédia, envolvendo especialmente o Brasil atual e os ‘’protagonistas esquecidos’’ como Cristian e Julia, nos seus últimos momentos, pelo menos no filme, Marcos Pimentel os filma perto da favela e dos seus sonhos. Julia se transforma em uma nova pessoa, como ela mesma expressa por meio de um ensaio fotográfico e pinturas em seu corpo, enquanto Cristian não é mais visto como uma figura problemática pelos outros, ele se revela um músico e está em um estúdio de gravação. Ele é da música. 

Como o próprio autor afirma, o Brasil filmado não criou divisões, pois o Brasil já nasceu dividido. As camisas amarelas apenas tornam um pouco mais visível o que era invisível.


Filme: Amanhã
Elenco: Júlia, Cristian, Cristiana e Marcos Pimentel
Direção: Marcos Pimentel
Roteiro: Marcos Pimentel e Ivan Morales Jr.
Produção: Brasil
Ano: 2023
Gênero: Documentário
Sinopse: Em 2002, três crianças se cruzaram em Belo Horizonte, na Barragem Santa Lúcia, que separa um conjunto de favelas de um bairro de classe média alta. Mesmo morando tão perto, sempre foram tão distantes. Durante dois finais de semana, elas experimentaram vivenciar universos sociais completamente diferentes do que estavam acostumadas. Vinte anos depois, o que aconteceu com cada uma delas? Entre 2002 e 2022, o Brasil foi virado pelo avesso. E suas vidas também. Um filme sobre os encontros e desencontros da sociedade brasileira contemporânea.
Classificação: 12 anos
Distribuidor: Descoloniza Filmes
Streaming: Indisponível
Nota: 9,0

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