CRÍTICA – BARDO, FALSA CRÔNICA DE ALGUMAS VERDADES

CRÍTICA – BARDO, FALSA CRÔNICA DE ALGUMAS VERDADES

Amores Brutos”, lançado em 2000, filmado inteiramente no México, causou um certo alvoroço na época. Lembro de ter visto o filme num cinema aqui de São Paulo e de ter ficado bastante impressionado com a reação do público: sala cheia e aplausos acalorados no final. 

A opção por uma câmera na mão que aproxima o espectador da experiência dura dos personagens, quase como num documentário, somada a uma direção de atores muito expressiva, sem contar o roteiro intrincado que exigia certa paciência prazerosa do mesmo espectador, tornavam o diretor mexicano um ponto fora da curva. Uma novidade relevante no pequeno — mas muito barulhento — mundo do cinema.

O cuidado com a direção de atores, a excelência do roteiro e, sobretudo, o apreço pela forma, seu modo personalíssimo de contar histórias, que se repetiria nos filmes seguintes, foram ao longo dos anos consolidando Alejandro Iñárritu como um dos diretores/autores mais importantes do nosso tempo. 

Bardo

De volta ao México, “Bardo – Falsa Crônica de Algumas Verdades”, filme mais recente de Iñárritu, começa de modo estranho, anunciando com contundência que não estamos sobre solo realista como no já citado “Amores Brutos”, mas pisando num terreno pantanoso feito de sonho, realidade e imaginação, sem que haja uma fronteira definida entre os três. Demora um pouco, portanto, para entender onde estamos e para onde vamos.

Silverio Gama, personagem protagonista do longa-metragem, é um documentarista que ainda não digeriu a morte do filho mais novo, tampouco sua mulher; e vive uma crise de desenraizamento provocada pelo auto-exílio nos EUA (ele é mexicano) somada à crise de meia-idade já instalada faz algum tempo. Toda essa turbulência alimenta o repertório de imagens e sons que fazem parte do docuficção que o protagonista recém dirigiu — é assim que ele classifica seu trabalho. Temos, então, um filme dentro de outro filme. Um documentário reflexivo que coloca o próprio Silverio como personagem, evidenciando o caráter de artefato, de construção em andamento da obra, evitando o julgamento objetivo da realidade, acionando estratégias de distanciamento crítico que lançam mão da paródia e da ironia, principalmente. O documentário de Silverio privilegia a incerteza e a dúvida como motor do processo criativo. O autor, assim, se coloca numa relação horizontal com o mundo que o cerca. 

 A escolha de Silverio o coloca em confronto direto com Luis Valdivia, o colega mexicano que se tornou um crítico feroz de seu trabalho e que protagoniza uma das melhores cenas de “Bardo”.  De um lado, um documentarista cético que procura interpretar o mundo através, sobretudo, das próprias emoções e sensações, e que para tanto evoca imagens soltas, livres, fragmentos da memória, por exemplo, sem necessariamente estarem vinculadas com a realidade objetiva — Silverio se recusa a explicar um mundo que ele afirma estar escorregando entre os dedos. Do outro lado, o jornalista-estrela que apregoa a objetividade, a busca pela verdade, a ordem e a clareza de exposição de ideias que devem estar sempre atreladas a uma relação de causa e efeito, algo que parece estar mais no discurso de Luis do que na prática de seu jornalismo de entretenimento pasteurizado. O jornalista está magoado e ressentido com o sucesso de Silverio, e é também sobre isso que trata a cena, seu outro tema. Um primor. 

Para finalizar

Iñárritu opta uma vez mais pela lente grande angular e pelo plano-sequência na elaboração da forma de seu novo filme. Para mim, é um tanto desonesto fazer qualquer tipo de consideração mais taxativa a respeito dessas escolhas. Elas nem sempre são tão objetivas quanto parecem. E nem sempre, portanto, são tão fáceis de interpretar.

Entendo o uso da angular como um meio puramente cinematográfico de distorcer o espaço e, no caso específico, intensificar ainda mais o aspecto onírico do filme. Essa distorção sutil do espaço se contrapõe em alguma medida ao tempo contínuo e mais dilatado dos inúmeros planos-sequência que surgem ao longo de “Bardo”, que são mais realistas, mais presos à nossa experiência cotidiana. Não é o tempo fragmentado do cinema, mas o tempo sem cortes do fato testemunhado na sua integralidade. Sonho e realidade, ficção e documentário. Juntos eles geram uma tensão interessante que atua sobretudo na subjetividade do espectador, no seu inconsciente, pois é um artifício para ser mais sentido do que pensado, racionalizado, pelo menos é assim que o vejo.

Esses aspectos da forma fílmica fazem parte principalmente das atribuições da fotografia. E é justamente nessa categoria que “Bardo – Falsa Crônica de Algumas Verdades” está concorrendo ao Oscar 2023, apenas nela. Achei injusto. Iñárritu merecia mais. Tanto pela ousadia quanto pela coragem de realizar um filme tão autoral e rigoroso.


Filme: Bardo, falsa crónica de unas cuantas verdades (Bardo – Falsa Crônica de Algumas Verdades)
Elenco: Daniel Giménez Cacho, Griselda Siciliani, Ximena Lamadrid, Íker Solano, Luz Jiménez, Luis Couturier, Andrés Almeida, Clementina Guadarrama, Jay Sanders, Francisco Rubio
Direção: Alejandro G. Iñárritu
Roteiro: Alejandro G. Iñárritu e Nicolás Giacobone
Produção: México
Ano: 2022
Gênero: Drama
Sinopse: Um aclamado jornalista e documentarista mexicano parte em uma jornada introspectiva para se reconciliar com o passado, com o presente e com sua própria identidade.
Classificação: 16 anos
Distribuidor: Netflix/O2 Play
Streaming: Netflix
Nota: 9,0

 

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