CRÍTICA – CERTO AGORA, ERRADO ANTES

CRÍTICA – CERTO AGORA, ERRADO ANTES

Todo filme de Hong Sang-Soo que assisto me causa um estranhamento muito particular, apesar da representação “crua” da realidade neles, me pego inquieto em relação aos diálogos e os caminhos a que eles levam, no início pensava que talvez fosse um estranhar dos assuntos e dinâmicas culturais sul coreanas, mas lembrava que não sentia algo assim ao ver obras de outros diretores da Coréia do Sul. Esses filmes de aparência simples, sóbria e, à primeira vista, até um tanto amadora, carregam em si uma complexa experimentação e uma grande profundidade, que vai muito além de uma filosofia a partir do banal da vida. Certo agora errado antes

Em 2015, o diretor estreou o filme Certo Agora, Errado Antes, seu décimo sétimo longa-metragem, que foi muito aclamado, ganhando o Leopardo de Ouro e o prêmio de Melhor Ator em Locarno, trazendo um maior reconhecimento e popularidade para sua vasta filmografia, na época já premiada com Un Certain Regard em Cannes em 2010. Em Certo Agora, Errado Antes acompanhamos a chegada do diretor de cinema Ham Chunsu à cidade de Suwon, um dia antes da exibição de seu filme, nesse meio tempo, ele conhece a artista plástica Yoon Heejung, assim acompanhamos os dois durante todo o dia, se conhecendo no café, no ateliê, no bar, na casa de amigos e na rua.

Desde o início do filme percebe-se que não se trata de uma dramédia romântica comum, mas mesmo assim as construções e quebras de expectativas do começo não te preparam para o que está por vir, uma verdadeira mudança de paradigmas formais e substanciais. Mas antes dessa reviravolta, o filme já acontece a partir dos diálogos de Ham e Yoon, conversas comuns, que não tem o tom ideal de romance mas não chegam a ser anti-românticas, eles não falam num ritmo de organização feito para seduzir e encantar o espectador, eles não tem momentos de efeito, com falas acertadas e memoráveis, afinal, eles falam como a maioria das pessoas realmente fala num encontro, falam como se “sem roteiro”. 

Um fator que permite tal representação estranhamente real, que estranhamos justamente pelo fato das representações realistas hegemônicas na ficção prezarem por enfeites dramáticos dos momentos reais, é o fator fotográfico das cenas de diálogo, sendo sempre longos planos sequências sem cortes que enquadram todos personagens e seu ambiente em distanciamentos médios, que só variam a partir de zooms, enfoques em determinados momentos. A sensação fotográfica desse filme é como a de um filme de ficção realista, em que subconscientemente pactuamos com a representação desse mundo, entretanto, a cada zoom, leve movimento de reenquadramento ou a fixa estabilidade do plano quando gostaríamos de ver por outro ângulo o que está tampado, tal pacto se fricciona, sentimos um ar que nem chega a ser semi documental, percebemos uma representação realista que de tão real, tem suas limitações.

Justamente a partir dessas limitações é que Hong Sang-Soo desenvolve seu método, bastante diferenciado, de fazer filmes. Em uma palestra realizada no Festival de Cinema de Nova York em 2017, Sang-Soo compartilhou detalhes sobre seu processo criativo produtivo, ele disse que cada filme leva em média três semanas para ser gravado e que começa as preparações um mês antes de iniciar as filmagens, nesse primeiro momento não há roteiro, a prioridade é pensar os lugares e pessoas. Quando iniciadas, a cada dia de gravação, na madrugada ele escreve três ou quatro cenas que serão rodadas naquela diária. Ao chegar no set, Hong entrega o texto para os atores, mas eles têm apenas cerca de 45 a 60 minutos para memorizarem as falas de cada cena, depois de memorizarem “uns 80%”, Hong junta os atores e fazem a cena, a partir dessa o diretor analisa e dependendo aconselha, tentando intervir o mínimo possível. Quando considera que já estão nos “90%”, Hong conversa com o operador de câmera, decidem a movimentação do plano e logo gravam a tomada daquela cena. Todas elas são gravadas na sequência narrativa, mais exatamente, a ordem que estarão dispostas na montagem final. A montagem geralmente leva um dia, quando concluída, Sang-Soo fica uma semana sem tocar no projeto, depois revê o material e o finaliza.

Tal sistema de produção, que além de tudo, é muito prolífico (um a dois filmes por ano), só é possível pelo baixo custo de produção, tamanho pequeno da equipe e realização junto à universidade na qual Hong é professor de Cinema, a qual não financia ou interfere em seus filmes, mas disponibiliza um local de escritório e alunos dispostos a compor a equipe.

Esse método calcado em limitações é justamente o que possibilita o aspecto genuíno de seus filmes, do texto e atuações que oscilam entre o programado e o ocorrido, não sendo improviso, mas sim uma espécie de performance do real, no sentido que lembra a arte performática, que parte de um programa pré-estabelecido, com preparação física e mental mas sem ensaio e com recepção ao acaso, ao imprevisto, à mudança de rotas a partir das situações concretas.

 Sob esse olhar, no início de Certo Agora, Errado Antes conhecemos Ham, o diretor personagem que em alguns momentos narra em voice over seus pensamentos-diário, logo de início sentimos a presença que o tema da fama, da admiração, do ego, da posição de artista na sociedade terá na história, mas que, se tratando de um filme de Hang Sang-Soo, será abordado da forma menos glamourizada possível. Yoon, a pintora não reconhece Ham, só depois de ouvir seu nome percebe que já ouviu falar dele mas nunca viu um filme do diretor. Esses temas não tomam o centro da história, eles permeiam o modo de agir e falar dos personagens, mesmo estando presentes nos assuntos, eles nunca se aprofundam, não ouvimos falas com novidades reflexivas ou frases marcantes que depois crescem na memória. Vemos falas com um apelo comum e particular, diálogos que aqueles personagens falariam naquelas circunstâncias, nada extraordinárias, circunstâncias que naturalmente não tem o poder de concentrar todo o brilho da existência de uma pessoa, podendo ser, talvez, só ser uma média imprecisa de mediocridade e surpresa. Ao vermos apenas um recorte da vida, como é o filme, Ham e Yoon são para nós o que eles conseguiram ser ali, naquele breve pedaço de espaço e tempo que assistimos na tela.

Outro aspecto instintivamente percebido é que a escolha desse protagonista, um diretor, na situação de ir exibir seu filme numa mostra, remete para um tom mais pessoal da história, parecendo algo inspirado na própria vida de Hong Sang-Soo. Tal sentimento é logo comprovado ao termos ciência de toda a polêmica e escândalo midiático que envolveu o filme no seu lançamento. Se você não viu o filme e está lendo essa crítica, recomendo que largue ela e depois de vê-lo volte aqui para o resto, pois saber de algumas informações extra-filme e do “virar de chaves” formal-narrativo que vou tratar pode estragar sua experiência. É bom viver o inédito. É bom ter surpresas.

Sendo assim, conforme descobrimos no filme que Ham é casado e mesmo assim está se envolvendo com Yoon, levantam-se especulações sobre o diretor Sang-Soo. Depois do lançamento do filme, boatos começaram a circular sobre Hong Sang-Soo estar traindo sua esposa com Kim Min Hee, que interpreta Yoon e que já era conhecida por protagonizar o filme A Criada de Park Chan-wook. Seguido por grande repercussão, tal boato depois foi confirmado por eles em uma conferência de imprensa do lançamento do filme Na Praia à Noite Sozinha em 2017, pelo qual Min Hee se tornou a primeira atriz sul-coreana a ganhar um urso de prata de melhor atriz.

Tal fato traz algumas camadas a mais para o filme, no nível de especulação, no grau de pessoalidade do roteiro, da possível veracidade de alguns eventos e falas. Tudo se complexifica ainda mais ao chegarmos na metade do filme quando parece que ele acabou, mas dá início a segunda parte, início de um recomeço. Estranhamos e desconfiamos até ver que a história está se repetindo só que de forma diferente, as cenas são as mesmas mas as falas e ações não, algumas se mantendo mais parecidas e outras menos.

A adoção desse dispositivo de repetição espelhada mas difusa altera radicalmente a dinâmica do público com o filme, que anteriormente já não era livre de estranhamento e indagação sobre os rumos desse romance de representação realista bem única. Na segunda parte, o interesse, a dúvida e a atenção é redobrada ao tentar entender o que está acontecendo nessa espécie de jogo fílmico em que instintivamente começamos a comparar as cenas do que já ocorreu com o que ocorre. Inicialmente tive a sensação de que a segunda parte parecia mais falsa e conforme as cenas passavam, senti um forte suspense sobre o que aconteceria depois, me indagando se as mudanças nas falas e interações conseguiriam mudar os rumos da narrativa.

Além disso, na segunda metade todos os diálogos parecem conspirar para uma dissolução de um possível romance, as falas se encaixam menos e os diálogos vão para caminhos menos fofos ou ternos, caindo as vezes em momentos desconfortáveis que me deixaram com agonia por medo deles não darem certo logo de início. Num primeiro momento senti que na segunda parte eles tinham menos química, mas com minha experiência espectatorial ainda atrelada à primeira parte, torcia para que eles terminassem juntos, mesmo que racionalmente visse motivos para achar o contrário, queria que minha expectativa frustrada com a dissolução do romance no final da primeira parte finalmente se concretizasse. Mas num segundo momento me pus a refletir se eles realmente não tinham química na segunda metade e comparei novamente o que aconteceu, apesar de mais atritos na segunda, talvez se mostraram mais vulneráveis um para o outro nesses momentos de fraqueza e desalinho. Também me pus a refletir como às vezes o que determina que um encontro, um vínculo romântico, dê certo ou errado não vai depender de falas ou ações erradas. A atração, a paixão, o tesão, não operam por meios muito racionais ou corretos, mesmo que nós espectadores usemos dessas ferramentas cognitivas e morais para avaliar e validar nossa torcida romântica por um casal.

Ao utilizar esse dispositivo de duplo, de espelho trincado, de jogo expansor no filme, sentimos como uma realidade não é mais real que a outra mostrada, Hong constrói aqui um filme metafísico ao pensar sobre a natureza da ideia de real, que parece mais falsa quando refletida. Hong atesta através de seu método uma forma como a realidade pode ser genuinamente representada, mas reitera por meio desse filme como ainda isso será relativo, dada a incapacidade de transpormos ela. Segundo o diretor, em resposta a plateia no Festival de Cinema de Nova York em 2017, após a exibição de Na Praia à Noite Sozinha: “Nós queremos acreditar que estamos vivendo no mesmo nível de realidade, mas a realidade nunca pode ser capturada… E como queremos viver juntos por necessidade, nós fazemos uma espécie de contrato: nós agimos como se vivêssemos no mesmo nível de realidade.”. 

Certo Agora, Errado Antes é muitas coisas, é real e falso demais, é e não é a realidade particular de Hong, que cria nesse romance quase um manifesto, uma declaração de amor amoral, uma linda traição, real e fictícia como qualquer experiência pessoal. Já escrito na orelha do livro que Ham recebe no final da primeira metade: “Disse que descobriu o que se esconde na superfície de nossas vidas. É a única maneira de superar nossos medos. Eu sinto o mesmo.”. Acho que Kim e Hong descobriram o que estava escondido e nos mostraram nessa declaração mútua, nesse romance corretamente errático, limitadamente expansor e genuinamente humano.

ENTREVISTA CITADA:

  • Hong Sang-soo | Directors Dialogue | NYFF55, 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DjAOlKrdpls

Filme: Ji-geum-eun-mat-go-geu-ddae-neun-teul-li-da (Certo Agora, Errado Antes)
Elenco: Jung Jae-young, Kim Min-hee, Youn Yuh-jung, Gi Ju-bong
Direção: Hong Sang-Soo
Roteiro: Hong Sang-Soo
Produção: Coréia do Sul
Ano: 2015
Gênero: Drama, Romance, Comédia
Sinopse: Um diretor de arte tem um dia livre antes de um evento. Para passar o tempo, ele vai até um antigo palácio, onde conhece uma jovem artista.
Classificação: 12 anos
Distribuidor: Next Entertainment World
Streaming: FILMMICA
Nota: 10

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