CRÍTICA – JEANNE DIELMAN

CRÍTICA – JEANNE DIELMAN

Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975) da diretora belga Chantal Akerman ganhou um novo destaque após ficar em primeiro lugar na lista dos 100 melhores filmes da história do Cinema, feita pelo BFI (British Film Instititute) em 2022, dez anos depois de sua última lista. Tal repercussão motivou uma retrospectiva da diretora, nesse mês de março, realizada pela Cinemateca do MAM (Museu de Arte Moderna) do Rio de Janeiro, onde vi o filme.

Jeanne Dielman têm uma premissa aparentemente simples, ele acompanha o dia a dia de uma viúva dona-de-casa que mora com seu filho adolescente, eu poderia aumentar essa micro sinopse que fiz aqui, dando mais detalhes instigantes que despertariam um maior interesse no longa, mas vou valorizar o sentimento de descoberta que sinto que tornou minha experiência espectatorial tão viva e interessada, pois fui para a cinemateca sem saber quase nada do filme, sabia que era um filme longo de quase três horas e meia, que se passa majoritariamente dentro do apartamento de Jeanne e que poderia ser classificado como slow cinema. Mas talvez esse termo não descreva tão bem o filme, que, com certeza, não é lento, se temos em mente que a narrativa falada não é o foco nem o referencial de movimento, e sim a protagonista que (quase) não para, estando em constante ação e deslocamento pelos espaços do filme.

Sendo assim, mesmo que essa crítica não tenha nenhum spoiler, recomendo que, se você não viu o filme, primeiro veja e depois, se quiser, volte aqui para ler uma segunda opinião, ou melhor, segunda experiência do longa. Afinal, pelo fato de ser um filme com poucas falas e longos momentos de silêncio, os fluxos mentais de cada espectador durante o longa são mais distintos e pessoais. Usando um exemplo bem banal, enquanto assistíamos Jeanne Dielman, minha amiga comentou como sentiu vontade de arrumar sua casa e quarto que estavam muito bagunçados, eu respondi que estava sentindo o contrário, pensando no tempo que gasto com afazeres domésticos, mesmo eu sendo o tipo de pessoa que quase nunca arruma a cama. 

O banal é algo central para o filme. Acompanhando as tarefas domésticas da protagonista, no início tive a impressão de que Jeanne poderia ser uma personagem caricata por seu senso de organização e perfeccionismo além do comum, um exagero proposital para apontar as ideias de ordem, controle e funcionamento mecânico da sociedade de massas capitalista. Obviamente isto também está contido na personagem, mas conforme o desenvolvimento do filme, a protagonista comete pequenos erros e ações que escapam essa rotina maquínica, desde um simples cruzar de pernas enquanto toma café em pé até erros, como a comida queimada, que mudam drasticamente o desenrolar da narrativa. Nestes momentos somos lembrados da humanidade de Jeanne, da beleza errática presente na aparente mediocridade de sua vida e do quão realista é tal personagem, cuja complexidade vai sendo aprofundada.

Estes momentos de escape das normas sistemáticas da rotina de Jeanne também ganham ênfase por seu contraste com a fotografia, que reitera sentimentos de disciplina, exatidão, imobilidade e aprisionamento, por meio dos longos planos estáticos, com ângulos repetitivos e milimetricamente enquadrados para valorizar as linhas retas de uma composição simetricamente balanceada e muitas vezes sufocante, enquadrando móveis e paredes que ocupam o quadro como moldura, espremendo Jeanne, que fica limitada a um espaço reduzido da cena. 

Entretanto, mesmo tendo uma fotografia com aspectos opressivos, ela não é maniqueísta, tanto que permite momentos de grande beleza, como nos jogos de luzes de uma das cenas do elevador, e até por meio das cores amenas e harmoniosas, que ao mesmo tempo que expressam uma ordem imposta, de pouca vivacidade, também suscitam certa calma e paz. Tais sentimentos também permitem que o visionamento do filme seja sensorialmente mais confortável, mesmo que, racionalmente, as cenas do dia a dia metódico de Jeanne sejam cansativas.

Além da fotografia, a atuação detalhista e regrada de Delphine Seyrig, que sustenta a postura de um corpo ininterrupto mas internamente exausto, também é basilar para construir uma espécie de jogo mental proposto pelo filme, que, por sua vez, só é possível pelo regime de atenção que Jeanne Dielman estabelece, tal jogo consiste no acompanhamento atento do espectador à rotina repetitiva da protagonista, levando ele a perceber detalhes e se surpreender quando as coisas fogem do esperado. Dessa forma, não só observamos Jeanne mas a monitoramos, vigiamos ela nos mínimos detalhes, como se interpretássemos o papel da sociedade de controle, capitalista e patriarcal, em que ela está subjugada.

Além do banal, no filme também está presente o extraordinário, o misterioso e o incerto, seja no trabalho remunerado que ela faz em casa, sem sabermos de início exatamente o que é, seja nas saídas noturnas com o filho ou na resposta da carta que recebe, o que não é dito nem mostrado contribui para a construção da curiosidade sobre que destino Jeanne terá, intensificando os momentos de surpresa, alguns dignos de sustos genuínos.

Por ser longo e ter muitas situações diferentes, mesmo se repetidas, Jeanne Dielman, permite muitas divagações sobre os múltiplos aspectos da vida doméstica da protagonista e obviamente do próprio espectador. O filme nos dá tempo para refletir e estranhar aspectos da vida nesse espaço, chamado de casa, em que passamos grande parte de nossas vidas. Me peguei pensando sobre como comemos quase sempre as mesmas coisas, me peguei pensando no trabalho de cuidado não remunerado que as mulheres mães estão sujeitas, me peguei devaneando um pouco em cenas aparentemente tão simples como o descascar de batatas ou a preparação de um café com leite, que naquele contexto ganharam tanto significado e talvez poeticidade. Mas justamente, por ser longo, os fluxos mentais não são capazes de ocupar todos espaços de silêncio do filme, muitas vezes estando presente apenas um forte sentimento de vazio, que em alguns momentos se vê espelhado em Jeanne.

Todos esses aspectos tornam Jeanne Dielman um filme único, tão único que não acho justo descrevê-lo apenas como uma crítica ao modo de vida capitalista, ao controle e automatização dos corpos ou a exploração do corpo feminino pela propriedade privada. Chantal Akerman subverte e experimenta o drama, construindo uma experiência inovadora com um filme fixante e instigante, que estabelece uma dinâmica bastante original com o espectador, conseguindo tratar de tantos assuntos centrais para pensar e estranhar a sociedade, conseguindo atingir o complexo, racionalmente e sensorialmente, por meio do banal.


Filme: Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles
Elenco: Delphine Seyrig, Jan Decorte
Direção: Chantal Akerman
Roteiro: Chantal Akerman
Produção: Bélgica, França
Ano: 1975
Gênero: Drama
Sinopse: Uma dona-de-casa solitária e viúva faz suas tarefas diárias, cuida de seu apartamento onde mora com seu filho adolescente e usa um truque estranho para conseguir pagar as contas. No entanto, acontece algo que muda sua rotina.
Classificação: 16 anos
Distribuidor: Janus Films
Streaming: Indisponível
Nota: 10

Sobre o Autor

Share

One thought on “CRÍTICA – JEANNE DIELMAN

  1. Destaco como ponto de partida, não se precede, uma necessidade quase obsessiva de Jeanne em não abandonar a sua rotina.
    O momento em que organiza em fileiras os cubos de açúcar antes de coloca-os na caneca, no momento de engraxar os sapatos,…; me levam pensar dessa maneira.
    Quando quieta e seus pensamentos buscavam a si própria, fugia rapidamente deles procurando algo para fazer.
    A conversa com o filho antes de dormir sobre o amigo e como este via as mulheres, foi reveladora no que diz respeito ao contexto da mulher naquela sociedade.
    Ter prazer, parecia uma coisa a ser evitada, mas nem sempre possível: o bebê que ela brinca, a demonstração de incômodo com filho que não a nota na refeição noturna, o presente que ganha, tentavam romper o custoso controle de Jeanne, mas que foi totalmente quebrado pelo orgasmo, que me pareceu ser inédito, com seu último cliente.
    A reação em seguida de Jeanne demonstra o tamanho dessa parede que bloqueia, acho eu, o medo do despertar da esperança e da possibilidade de ser feliz.
    Grande filme.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *