CRÍTICA – WHEN EVIL LURKS

CRÍTICA – WHEN EVIL LURKS

O subgênero da possessão demoníaca vive desgastado desde o momento que “O Exorcista” (1973) foi exibido nos cinemas, sendo aproveitado e reaproveitado de diversas maneiras, contando com um número massivo de filmes medíocres e indiferentes. É sempre, no mínimo, interessante testemunhar um respiro, afago e abraço de algo que se apresenta – em sua apresentação – novo. Não que seja problemático se deparar com o clichê do clichê, desde que bem feito, tal qual “A Morte do Demônio: a Ascensão” (2023), que não faz nada além de respeitar genuinamente sua fórmula enquanto franquia.

Aqui, já é a manifestação de um terceiro caso: não é um simples respiro, afago e abraço, é uma consolidação por completo do prazer e satisfação de não só se deparar com uma ideia boa, mas sim com uma execução extremamente bem amarrada e planejada! A possessão em uma perspectiva de contágio, alastrando-se como um vírus, não é novo, já fora testemunhada em “REC” (2007), no entanto, no filme espanhol caminha para uma interpretação biológica de uma resolução do ritual de exorcismo alternativo que não soluciona muito bem a situação. Qual é a perspectiva inovadora de “When Evil Lurks” (2023)? É uma obra fronteiriça, que intercambia os subgêneros do terror, estabelecendo relações antes não testemunhadas. Daí advém o respiro de originalidade.

O mistério é implantado logo de início, os dois personagens principais Pedro (Ezequiel Rodriguez) e Jimmy (Demián Salomón) ouvem disparos pela noite e, pela manhã vão a procura do que ocorreu próximo a sua propriedade. É encontrado um corpo cortado ao meio. A partir deste ponto, somente o desespero guia narrativa, onde só aumenta o ritmo da desgraça que será testemunhada pelo público. A “podridão” chegou em sua região, há um possuído e o responsável pela sua limpeza está morto. A segurança pública não acredita no relato dos irmãos, que decidem junto do fazendeiro Luis (Luis Ziembrowski) dar um jeito na situação…

– Optarei por não dar tantos detalhes do roteiro e da narrativa, evitando me alongar muito em expor os acontecimentos do longa, mas impossível analisar sem realçar determinadas cenas, por isso, dou o recado: permita-se assistir antes, vá puro e sem muitas informações, pois o impacto será muito maior –

As ferramentas utilizadas do terror aqui são magníficas, afinal o “desconhecido” familiar – familiar por se tratar de possuídos – é realçado a cada minuto que se há contato com a ameaça que meandra pela história. Como funciona? Onde estão os exorcistas? A maneira que o filme opta para explicar é encaixando com naturalidade através dos diálogos o universo da narrativa, assim enaltecendo mistério – “não se deve matar a besta com armas”; “a luz elétrica atrai o mal pelas sombras”; “jogue fora tudo que tenha tido contato com um apodrecido” – estabelecendo regras que implanta a curiosidade de entender qual o problema, qual a resolução e o que é que está acontecendo neste mundo. Não há excesso, pensado na dosagem correta – havendo somente uma cena que o diálogo se estende demasiadamente, relatando os ocorridos no início dos eventos trágicos da história, mas não quebra tanto, afinal é próximo ao clímax e se está imerso por completo na ambientação aterrorizante – o que faz a ideia ter corpo, funcionalidade e conteúdo. O desconhecido parte de entender como funciona essa possessão e, ela se espalha, infecta, intoxica suas vítimas. Talvez o mundo esteja na beira do precipício e ninguém sabe. Esse ato de mostrar partes e fragmentos dos ocorridos no mundo realça a paranoia, desespero e infelicidade das personagens que vivem no interior. Chegou até mesmo ali. Resta imaginar… Como será que é na cidade grande?

A igreja falhou. Deus está morto. Restou ao estado e a materialidade lidar com a ameaça imaterial. Essas duas afirmações iniciais abraçam por completo a insanidade que permeia de maneira absoluta todas as cenas. Aquela proteção “sagrada” e “imaculada” da igreja, a imagem poderosa do exorcista munido das ferramentas e ritos que combatem o mal, não existem aqui. Sobraram as sombras, o obscuro, a escuridão e a total decadência. Equivalente ao encarar o vazio do espaço lovecraftiano, encara-se aqui o vazio da desesperança humana, sabendo-se que a cada minuto do relógio apocalíptico que toca nas cabeças dos que assistem, resta presenciar a completa e irrefutável jornada trágica das personagens. Para aquele que é sagaz, já se capta que o fim não haverá redenção, solução ou alívio. Que fechem as cortinas e deixem o mal bruxulear perante as velas e fogueiras.

Essa falência que o elenco está fadado e, por consequência transmitido para aquele que acompanha a narrativa é aumentada pelo ritmo que o longa impõe da exposição do horror. A partir da primeira morte, da exposição do “apodrecido” adiante não há um segundo sequer de suspiro. A violência escala para níveis que até mesmo quem está acostumado é surpreendido pela ousadia e pelo grotesco. Não estabelece um recanto seguro, onde se pode esconder e deixar os pensamentos livres. A imersão que captura o interlocutor, estabelecida nos minutos iniciais, cumpre seu papel com exímio: não dá para desprender os olhos da tela e o receio de que algo desgraçado irá ocorrer vive em cada segundo extenso das cenas de tensão e quando atinge seu ápice, consolidando a manifestação da violência e do horror o coração é disparado junto dos gritos e do ritmo acelerado que se segue na direção, cinematografia, atuação e edição! Por mais variados exemplos que se tenha das violações contra crianças em filmes de terror – It: A Coisa, Invocação do Mal e O Exorcista etc. – há sempre um ar de segurança, de que uma resolução positiva – por mais relativa e insegura que seja – rodeia as personagens, uma aura de que os pequenos sairão seguros de alguma forma. As crianças estão condicionadas a mesma violência e aqui, com primor e muito mérito, não desvia a câmera um segundo sequer quando alguma delas sofre ou promove um ato de violência!

Surge, então, a importância da câmera, da cinematografia e da edição! Ás vezes se é esquecido o papel essencial dela, principalmente no que tange ao que mostrar e o que ocultar. Não há desvios, não existem cortes abruptos e simultaneamente, sugestiona, joga com as cores e ambientes, com uma inteligência da iluminação que não existe palavra melhor para definir esse trabalho se não maravilhoso! A retomada estética da década de 80 do terror é visível, explorando tanto o terror quanto o horror e, concretizando o absurdo da época onde predominava-se as histórias obscenas e pessimistas. A câmera expõe a sujeira viciosa que serpenteia casas e carros, focando em tudo que há de violento, maligno e vil que existe e se manifesta nesse mundo.

Deus está morto. Assim como o amor também está. Essa possessão que se espalha violenta as relações familiares, violenta o ceio de união entre as pessoas. A mensagem final é o predomínio da individualidade, da segregação espacial e emocional daqueles que habitam esse mundo. Pedro, o protagonista, é divorciado e, além de tudo possui restrições para visitar seus filhos. Fica muito claro a relação traumática vivida tanto por ele quanto pela esposa em sua separação, expondo um surto crítico no momento em que Pedro vai até a casa da esposa tentar resguarda-los do mal que está para chegar na cidade. Ninguém acredita em seu relato – e outra vez a segurança pública se mostra inútil, ineficiente e passiva quando a filha de sua esposa é atacada pelo cachorro. Nem mesmo os animais estão seguros do contágio, nem mesmo o amor mais inocente que os seres humanos podem ter é protegido, mas sim violado e abusado. Em quem confiar? O Estado está falido. A família destruída. A igreja morta. A tecnologia atraí o mal. É um retorno ao estado primitivo, ao estado de natureza hobbesiano, onde o homem se torna o lobo do próprio homem, movido pelas inerentes habilidades e saídas do demônio. Esse é o ponto aterrorizante, somando-se a todos os pontos anteriores levantados, depara-se com um niilismo extremo, tendenciosamente refletor dos possíveis caminhos contemporâneos da humanidade em pleno 2023. Não nos deparamos com possuídos contagiando outras pessoas, mas, com um aquecimento global alarmante, com guerras alastrando-se e com um sistema capitalista que promove um suicídio coletivo da espécie humana.

As crianças são o ponto crítico dessa mensagem. Espelhos da moralidade, refletem as tendências do mundo tal qual o ponto de vista em que foram criadas. Devoram – muito além da própria literalidade dessa palavra, que ocorre no filme – as tradições, ritos, uniões e seguranças. Afinal, se deparam com um mundo cruel, corrompido e ineficaz, recheado de violências em níveis macro e micro. A resolução é a crença no anti-cristo, é proteger e auxiliar no nascimento daquele responsável por dar os pontos finais na trajetória histórica-cultural humana. O mundo da geração mais velha não existe mais, os extremos se manifestaram outra vez tal qual o início do Séc. XX. Pandemia, guerras e crises. A geração de meia-idade se defronta com o fim da linha de um mundo em que se era possível construir um futuro, era permitido sonhar e almejar. O fim do mundo pacífico. As crianças não visionam esses sonhos, consumidas pelo fim da inocência e amordaçar tecnológico, onde as luzes atraem os sombrios pensamentos da obscena presença do maligno. Elas protegem o mal e a figura diabólica ama as crianças. Mentiras perniciosas, mentiras perspicazes que destroem o último bastião de esperança para as personagens e para a própria humanidade!

Haja estômago para aqueles que espreitam esse longa, afinal, aterroriza e horroriza em seu cume transformando o desconhecido mal, naquela familiaridade caótica que rodeia o mundo dos interlocutores. É um escândalo visual que apavora visualmente e filosoficamente, promovendo um pessimismo que faz a Caverna de Platão parecer incrivelmente prazerosa e segura. A ignorância se torna uma benção. Não há Deus cristão-judaico e não há Ciência iluminista com poderes suficientes para fazer a roda caótica do fim do mundo parar de girar.

E quando o mal espreita… – gostaram da tradução literal? Só para aliviar no clima – não se deve esquecer que “o mal não é nunca abstrato. Deve ser compreendido sempre em termos do sofrimento de uma pessoa” (p. 1)” (RUSSEL). A cena final glorifica esse sofrimento, não só das personagens, daquele mundo, mas do próprio público que decidiu por vontade própria testemunhar a vitória do mal.

Acabou o filme. Acabou a resenha. Fique no silêncio e deixe o piano melancólico dos créditos arrebatar sua alma, arrepiar todos os fios de cabelo do corpo e a cabeça pesada. Uma experiência única, que merece ser revisitada muitas vezes para capturar tudo o que deve ser capturado do filme – no devido momento e com o emocional preparado para a jornada trágica. When Evil Lurks (2023) compete em meu coração a posição de um dos melhores filmes de terror contemporâneos já produzidos, mas, para essa resposta, somente o tempo dará reais resoluções. Magnífico em seu esplendoroso terror… Vá para longe das luzes elétricas, fuja para o interior, isole-se de tudo que te faz mal e tente viver a vida, pois o anti-cristo ruma para a cidade, para o país, para o próprio mundo!

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

RUSSEL, Jeffrey Burton. O Diabo: as percepções do mal da antiguidade ao cristianismo primitivo. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991.


Filme: Cuando Acecha La Maldad
Elenco: Ezequiel Rodrigues, Emilio Vodanovich, Luis Ziembrowski, Demién Salomón, Silvina Salbater.
Direção: Demián Rugna
Roteiro: Demián Rugna
Produção: Argentina
Ano: 2023
Gênero: Horror, Terror, Sobrenatural.
Sinopse: Em uma cidade remota, dois irmãos encontram um homem infectado pelo diabo prestes a dar à luz a própria doença. Eles decidem se livrar do homem, mas só conseguem espalhar o caos
Classificação: 18 anos
Distribuidor: Shadder
Streaming: Indisponível
Nota: 10

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