CRÍTICA – BATISMO DE SANGUE

CRÍTICA – BATISMO DE SANGUE

Quando não há preservação na memória do coletivo, sendo afirmado e reafirmado várias vezes, a tendência sobre os fatos é diluída, a história se torna relativa e a mentira ganha patamar de vencedora. Sem um trabalho contínuo de conscientização da população, abrem-se as portas da ignorância para ela reinar.

 

“Respondeu Jesus: ‘Ame o Senhor,  o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento’.

Este é o primeiro e maior mandamento.

E o segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo” (MATHEUS 22: 37-39).

 

E os autoritários, aqueles que usufruem da máquina pública para disseminar o controle, para levar as massas através de sua ideologia, promovendo todo tipo de atrocidade em nome da pátria, em nome da família e em acima de todos: em nome de Deus. A ditadura militar brasileira (1964-1989) é o melhor exemplo do potencial violento demonstrado e da relativização histórica recorrente que busca vangloriar esse episódio histórico obscuro da trajetória brasileira. É um elo fraco, uma cicatriz não completamente fechada e tratada, com tendências a reabrir e de dentro dela surgir todo tipo de infecção e insanidade – necessário ressaltar o surgimento do bolsonarismo e toda a loucura política de sua gestão e apoiadores. Esses líderes políticos e religiosos enchem a boca com os escritos bíblicos e gritam o nome de Deus para eliminar seus adversários, subvertendo e corrompendo a tal ponto que surge a questão: será que eles leram a mesma versão da bíblia que os demais?

Batismo de Sangue é um filme – e primeiramente livro – que retrata não só o período da ditadura militar, como expõe a experiência de diversas personagens com a truculência e sadismo dos “oficiais” do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). O foco principal são os quatro protagonistas: dominicanos que através do próprio estudo de ordem teológica chegam na resolução de que a ditadura é inválida e que a coerção, perseguição e censura devem ser combatidas. Vale o destaque para Frei Tito (Caio Blat), Frei Ivo (Odilon Esteves), Frei Betto (Daniel de Oliveira) e Frei Fernando (Leo Quintao) que além das excelentes atuações, venceram desafios da exposição dos próprios corpos para a retratação nua e crua das torturas sofridas pelas pessoas reais que sofreram durante o período. A representação do período é riquíssima desde os ambientes da época, vestimentas, carros e músicas. É implantado um clima de esperança somado a revolta. Quando as personagens conhecem o icônico Marighella (Markus Ribas), é de impressionar o quanto idêntico o ator é da figura histórica. Para além dos quatro dominicanos, muitas atuações soam artificiais, o que pode vir a promover quebra de imersão, mas nada que não seja superado com o seguimento narrativo bem cadenciado.

A edição e fotografia compõem uma iluminação dos cenários que retrata muito bem um amarelo azedo, um azul depressivo e um marrom sujo e corrupto. Realça as sombras enaltecendo os segredos, suspeitas e conspirações, porém uma indiferença do próprio mundo aos eventos atrozes ocorridos dentro e fora das habitações do DOPS. Lugares que sangram até os dias de hoje com os ecos gritantes, sufocados e fantasmagóricos daqueles muitos que nunca mais viram a luz do sol e nem sequer são lembrados por grande parcela da população.

Bom, por mais subentendido que esteja, o clima inicial é de esperança, de luta e de guerrilha, apesar já das visíveis perseguições, censura e presos políticos. A narrativa mostra o cerco se fechando, surgindo aquela apreensão de quando será a vez das protagonistas. É bizarro que em momento algum há uma humanização das vítimas no ponto de vista dos militares, são “terroristas” e “comunistas” que destroem a pátria, destroem a família tradicional e corrompem os jovens para “atos subversivos”. O peso aqui, é que membros da comunidade religiosa, representantes do clero nacional, estão sujeitos as mesmas violências, torturas e horrores. É o Batismo de Sangue das personagens e das pessoas que viveram essa situação representada ficcionalmente. E quando nos deparamos com a personagem histórica Fleury (Cássio Gabus Mendes) é a concretização desse símbolo do abuso de autoridade, da criatividade para obscenidades e da culminação da tortura. É impossível mensurar os danos físicos e psicológicos gerados por Fleury e seus oficiais aos dominicanos. Males sofridos por seguirem os ideais revolucionários bíblicos.

 

“O cristianismo é essencialmente transformador e essa revolução não se limita à história, culmina na transcendência. Jesus anunciou o Reino de Deus, a transformação radical deste mundo, liberdade e amor, aí estão as sementes do Reino. O cristão, como discípulo de Cristo, não tem outro compromisso senão com o Espírito que nos anima na direção dessa esperança. A fé desmascara, à luz da palavra de Deus, o discurso ideológico dos dominadores. Jesus assume a identidade dos oprimidos, e neles quer ser amado e servido: ‘Tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber’” (BETTO, p. 103).

 

O longa-metragem se torna uma porta de abertura para explorar mais a fundo a obscuridade que permeia a memória curta do brasileiro em relação ao período da Ditadura Militar. É dolorido, é de retirar o sono e calma da mente e do espírito daquele que se sensibiliza com os males sofridos. A partir da morte de Marighella, onde o cerco se fecha ao redor dos dominicanos, não há mais esperança nem para eles e nem para o público. Aguardamos a prisão, aguardamos sem anseio algum pelas desgraças que serão testemunhadas. É da ficção se abrem as portas imaginárias para a realidade concreta, dura e sádica. Vale para aquele curioso, ter contato com as mais diversas figuras que lutaram, relembrar nomes e rostos importantes que lutaram contra esse regime ditatorial, onde tantos desapareceriam, outros tantos morreriam e muitos poucos sobreviveram. Caso tenha estômago, vale testemunhar pelas palavras dos sobreviventes – que sofreriam muito ao longo da vida, com trechos de testemunho até de Frei Tito (que comete suicídio no início do filme) relatando o que vivenciou nos porões de tortura da ditadura – nesse vídeo anexado aqui. RESSALTO QUE PODE SER GATILHO pelos relatos, então, caso vá ver, vá preparado!

E na representação cinematográfica dessa violência, opta-se por ocultar o mínimo e mostrar ao máximo. O trabalho que é feito com o elenco para o nível de exposição à qual os atores são submetidos é surreal, fazendo-os vivenciar – sem dublês – a desgraça dos sobreviventes. Desnudos de toda roupa, partes íntimas expostas, limpos e frágeis para toda atrocidade que será interpretada por aqueles que sofrem e por aqueles que promovem aquela violência. Cássio Gabus Mendes incorpora com tamanha força o papel de Fleury que você sente a indiferença, a malignidade e muitas vezes o prazer escondido em suas pequenas expressões enquanto busca retirar informações dos torturados. Está longe dos filmes que vangloriam a violência, que apelam para o fetiche e romantização. Não há nada além da verdade crua e suja. Dos anos de prisão. Do receio de quem será o próximo. Todos são submetidos à desgraça e nessa longa trajetória trágica, é chegado o ponto de Frei Tito.

A narrativa aqui é fragmentada, expondo trechos que mais alimentam a imaginação do todo, ganhando tonalidades tão absurdas e grotescas do que sofreu que não existem palavras capacitadas a narrar o que aconteceu. Melhor deixar à cargo do silêncio e do público que ousar espreitar o longa-metragem o testemunho. Não existe Deus, não existe crença, não existe força de espírito que resista fisicamente e psicologicamente ao que é feito.

O resultado no final é um tanto pessimista. Tamanha repressão apagou ao longo da ditadura a morte de qualquer possível núcleo de resistência. Mentes silenciadas, vidas ceifadas e corpos retorcidos. O povo não foi as ruas e os resistentes exilados em terras estrangeiras. Restou as notas musicais, aos violões e as poucas vozes expressivas denunciar tudo o que acontecia nas terras brasileiras. E pelas palavras de Tom Zé, em “Menina, Amanhã de Manhã (O Sonho Voltou)”

 

Menina, amanhã de manhã

quando a gente acordar

quero te dizer

que a felicidade vai

desabar sobre os homens

vai

desabar sobre os homens

vai

desabar sobre os homens

Na hora ninguém escapa

debaixo da cama

ninguém se esconde

a felicidade vai

desabar sobre os homens

vai

desabar sobre os homens

vai

desabar sobre os homens

Menina, ela mete medo

menina, ela fecha a roda

menina, não tem saída

de cima, de banda ou de lado

Menina, olhe pra frente

Oh! menina, todo cuidado

não queira dormir no ponto

seguro o jogo, atenção

(De manhã)

 

É o famoso “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”. O país onde o sorriso era forçado, onde o futuro se construía em cima de sangue e cadáveres, de um povo reprimido que lhe restava somente os ossos e o lixo. Uma classe média inapta, qualificada somente à replicar o que a elite nos permite dizer. A felicidade vai desabar sobre os homens, desarmando-os de qualquer ferramenta que os deixe livres desse quadro do terror, onde grande parte da população brasileira foi autora. Um jogo de títeres para manutenção do poder por aqueles que vivem no topo da Torre de Babel, alocados em suas cadeiras controlando o formigueiro que trabalha incessantemente para mantê-los com todos seus privilégios. Há quem defenda a ditadura militar, que enche a boca para dizer que a perseguição só foi atrás dos “vagabundos”, dos “arruaceiros”, daqueles cheios de atitudes “subversivas”. Pensar pelo bem da comunidade, pelo bem do camponês, por visualizar um mundo minimamente mais igualitário, ruiu-se o castelo de areia pelas catacumbas da prisão. E, após tantos apesares de você, batizados em sangue, buscou-se a obtenção da verdade. E da verdade surgiram as listas, documentos, registros, testemunhos, relatos e sonhos de dias malignos e nevoados. É difícil correr dessa felicidade, de se proteger dos meios que buscam perdoar. Não há perdão para aqueles que promoveram e para aqueles que defendem tudo o que foi feito.

Batismo de Sangue é um clássico que nunca deveria ser esquecido. Deveria estar nas grades curriculares do ensino médio, perpetuando na memória coletiva da população os erros do passado, para quem sabe, cortar no ceio a semente que permitiria o retorno de tamanhas atrocidades. Estamos longe do ideal, estamos longe de um mundo pleno, com tantas tragédias noticiadas pelas diferentes mídias contemporâneas, mas existe uma luz no fim do túnel, para resolução e pela salvação de mentes, corpos e espíritos da nossa humanidade interna. Não se deve esquecer a palavra comunidade, do olhar para o outro e entender que ali reside uma história, uma trajetória e muita luta! A admiração por essa instituição específica da Igreja Católica engrandece por entenderem e aplicarem os reais ensinamentos das palavras de Jesus Cristo. Lutaram e sofreram pelos silenciados e perseguidos. Hoje existem tantas contradições de pessoas que falam de Cristo com tantas polêmicas que surge a pergunta: qual é essa versão da Bíblia que andam lendo? Pregam o totalmente contrário dos ensinamentos basilares bíblicos que é fácil de crer que caso Jesus voltasse aos dias contemporâneos seria crucificado novamente por aqueles que o defendem com unhas e dentes.

Viva Carlos Marighella, viva a revolução e que morramos conscientizando por um mundo onde não se alastrem mais as sementes do fascismo…

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BETTO, Frei. Batismo de Sangue. Rio de Janeiro: Rocco, 2021.


Filme: Batismo de Sangue
Elenco: Caio Blat, Odilon Esteves, Cássio Gabus Mendes, Leo Quintao, Ângelo Antonio, Markus Ribas.
Direção: Helvécio Ratton
Roteiro: Helvécio Ratton, Dani Patarra
Produção: Brasil
Ano: 2006
Gênero: Drama
Sinopse: Cinco frades dominicanos se engajam na guerrilha contra a ditadura militar nos anos 1960 no Brasil. Por apoiarem a luta armada, são considerados comunistas, presos e torturados.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Quimera Produções
Streaming: Prime Video
Nota: 10

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