CRÍTICA – O MELHOR ESTÁ POR VIR

CRÍTICA – O MELHOR ESTÁ POR VIR

Nanni Moretti foi uma das maiores descobertas cinematográficas que fiz nos últimos anos. O realizador italiano, responsável por contar histórias bastante peculiares e autocentradas – muitas vezes atuadas por ele mesmo – está lançando seu mais recente filme, O melhor está por vir (Il sol dell’avvenire, 2023), que em mais uma de suas histórias peculiares, ambienta-se em um set de filmagem onde um diretor tenta filmar um longa-metragem sobre a Itália dos anos 1950.

Um dia antes de assistir a esse filme para escrever este texto, assisti a uma produção mais antiga de Moretti, Aprile (1998), obra que retrata a tentativa do cineasta de produzir um documentário sobre as eleições italianas e o embate entre a direita e a esquerda em seu país. Ao fim, a produção não dá certo da forma que Moretti previu, e acaba tornando-se uma docuficção sobre sua própria vida, passando pelo nascimento de seu primeiro filho e suas angústias tanto em âmbito político quanto dentro do universo em que trabalha, o cinema.

Em muitos pontos, O melhor está por vir se assemelha a Aprile. Aqui, o protagonista – interpretado por Moretti – é um diretor chamado Giovanni – nome real do diretor e roteirista – e mais uma vez, somos apresentados à personalidade já conhecida deste personagem que está em praticamente todos os seus filmes. Um diretor excêntrico, hiperativo e muitas vezes beirando à loucura preenche a tela com um carisma magnético que prende o espectador e muitas vezes lhe leva ao riso e às lágrimas em fração de segundos. Sua missão aqui está em filmar um pequeno núcleo dentro da Itália, onde um vilarejo comunista recebe um circo húngaro em meio à invasão soviética acontecendo na Hungria em 1956.

Uma das melhores coisas sobre os filmes de Nanni Moretti está no fato de que, sim, suas produções possuem, quase sempre, muitos pontos em comum. Porém, cada uma delas é única dentro de suas peculiaridades. A autorreferência é algo que sempre estará ali, algumas vezes de forma sutil, em outras de maneira bastante escancarada. Seu amor pelo cinema é amplamente abordado em todas essas produções e é a parte mais bonita de suas obras.

Em O melhor está por vir, há inclusive, uma cena em que o realizador passeia de patinete na companhia Pierre, personagem interpretado pelo ator francês Mathieu Amalric e menciona o fato de que em todos os seus filmes ele precisa inserir pelo menos uma cena das ruas daquele bairro em Roma. Sutilmente, essa referência, ainda que esteja em todos os seus filmes, lembra de imediato uma cena de Caro Diario, (1993), quando o diretor transita pelas mesmas ruas em sua scooter. A capa de O melhor está por vir é, também, uma referência ao filme de 1993, que contém em seu pôster um desenho de Moretti de costas na mesma scooter. Aqui, o desenho apresenta o diretor em seu patinete, porém de frente.

Falo sobre todas estas referências e excentricidades próprias das produções de Moretti para situar o leitor de que o universo criado por este realizador é vasto e cheio de pequenas nuances de um projeto cinematográfico que é um pouco mais explorado a cada uma de suas produções. O humor característico de seus projetos é algo que cresce no espectador de forma gradual até que preencha tudo ao seu redor. A personalidade de seu personagem, que muda, entre outras pequenas coisas, de nome a cada filme, de início pode chegar a irritar um pouco, por conta de sua especificidade em relação a tudo, porém, depois de um tempo, somos completamente levados por seu carisma natural.

Uma das crises abordadas pelo roteiro de O melhor está por vir está, inclusive, nesse ponto específico de sua personalidade. Sua esposa Paola – interpretada por Marguerita Buy – que pretende lhe deixar, não sabe como fazê-lo, uma vez que não há pistas de como Giovanni poderia reagir a uma separação “repentina” de sua companheira de muitos anos. Em meio ao desmoronamento de seu filme e de suas relações dentro de casa, o filme de Moretti costura uma narrativa que mescla gêneros e tem um gosto agridoce em certos momentos.

O caminhar dos acontecimentos é proporcional às atitudes impensadas do protagonista, que muitas vezes “empurra” sua visão de mundo às outras pessoas e espera que elas entendam seu jeito muito particular de enxergar as coisas ao seu redor. Há uma cena maravilhosa onde Giovanni interrompe uma gravação do filme que sua esposa está produzindo para fazer um monólogo sobre violência e sua representação no cinema. Citando Krzysztof Kieslowski e ligando pessoalmente para Martin Scorcese – que cai na secretária eletrônica – ele atrasa em muitas horas o último ato de uma obra que, não importa o que faça, será lançada. Ainda assim, é uma tomada memorável em seu filme, seja pelo humor empreendido em sua composição, seja pelo discurso sobre violência.

Há, é claro, bastante drama envolvido na composição do roteiro de O melhor está por vir. Muitas coisas sobre o enredo do filme dentro do filme preocupam a esposa do protagonista e a discussão sobre isso vai além dos problemas com a produção do longa-metragem. Há muito da insatisfação do diretor com seu trabalho, seus problemas familiares e a mudança constante de ideia sobre o que quer, exatamente, filmar. O roteiro que o protagonista escreveu começa a crescer dentro dele e a assustá-lo cada vez mais, quando percebe que muito da personalidade do protagonista de seu filme, o líder do partido comunista do vilarejo, é bastante espelhada nele próprio.

Passando por questões relacionadas justamente ao fato de não parecer haver uma divisão entre o cineasta e suas produções, O melhor está por vir encerra sua discussão de uma forma bastante Nanni Moretti de ser. Retomando novamente Aprile, onde o diretor menciona ao final que gosta de filmar a beleza das coisas, aqui seu enredo, que passara por enormes percalços encontra seu desfecho da forma mais distinta possível. A cena final emociona e rompe, de certa forma, a barreira entre ficção e realidade. Ao fim, a mensagem do título do filme, sobre um sol que brilhará, dia após dia, transmite a aura das obras de Moretti, sempre em busca do lado bom das coisas, embora este possa parecer tão distante. Acreditar nele nem que seja somente pelo tempo de duração do filme é uma experiência bastante agradável e aconchegante.

O melhor está por vir estreia nos cinemas brasileiros em 04 de janeiro de 2024.


  Filme: Il Sol Dell’avvenire (O melhor está por vir)
Elenco: Nanni Moretti, Marguerita Buy, Silvio Orlando, Barbora Bobul’ová, Mathieu Amalric, Valentina Romani.
Direção: Nanni Moretti
Roteiro: Nanni Moretti, Federica Pontremoli, Francesca Marciano, Valia Santella.
Produção: Itália
Ano: 2023
Gênero: Comédia, Drama
Sinopse: Giovanni é um cineasta que tenta desesperadamente terminar um filme ambientado em Roma, na década de 1950, sobre comunistas italianos. Mas uma série de obstáculos se interpõe em seu caminho: uma atriz teimosa, orçamento apertado, seu próprio casamento em colapso e o namoro da filha com um tipo inesperado. Sempre no limite, Giovanni terá que repensar sua maneira de agir e acreditar que o melhor está por vir.
Classificação: 12 anos
Distribuidor: Pandora Filmes
Streaming: Indisponível
Nota: 8,5

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