OLDBOY

OLDBOY

“A mais bela tragédia é aquela cuja composição deve ser não simples, mas complexa; aquela cujos fatos, por ela imitados, são capazes de excitar o temor e a compaixão” (p. 40, ARISTÓTELES).

Pode-se dizer que a tragédia, desde os tempos remanescentes do primeiro escrito crítico sobre a arte teatral, do vindouro e eterno Aristóteles, este gênero saiu da Grécia para tomar o mundo. Na infinitude das possibilidades que o texto passa em suas interpretações, é eterna as variabilidades e manifestações que podem ser ouvidas, lidas e assistidas nos campos atuais da contemporaneidade artística, porém, nada se compara com a releitura e adaptação que Oldboy, de Park Chan-wook faz do gênero, tomando das linhas clássicas para impactar a todo o público que ousa explorar sua história!

Já alerto para aqueles que não assistiram e estão curiosos para explorar essa crítica, buscando motivos para assistir esse clássico do cinema coreano, que a mais pura e válida experiência com este longa é sem nenhuma informação sobre o mesmo! Sua composição é intrínseca ao pilar da surpresa, da reviravolta e do impacto de suas revelações! Oldboy é uma das poucas obras cinematográficas que sempre pedi e me excitei por acompanhar colegas, amigos e conhecidos por virem sem saber absolutamente nada sobre o filme. Dito isso, em palavras bem resumidas: SPOILERS para todos os cantos a partir do próximo parágrafo!

Oldboy é daqueles filmes que quebram a bolha e atingem à todos e tudo em seu lançamento, sendo, provavelmente, o grande expoente do cinema coreano de sua época, mostrando a fresta da força artística que se tornaria o grande manifesto atual de sua arte e cultura no cenário global. Para tal referência chegar no interior do estado de São Paulo, em uma cidade com menos de 20.000 habitantes, sendo comentada e assistida em diferentes grupos interessados, é surreal a força artística carregada em sua história. É de promover arrepios, pelo simples fato, de lembrar as cenas, suas músicas, as suas falas e interpretações, um filme que implanta uma cicatriz memorial no público que nunca mais irá esquecer aquilo que testemunhou, tal qual na mesma grandiosidade de Édipo Rei e Antígona de Sófocles ou Medeia de Eurípedes. Por sorte, não furamos nossos próprios olhos, catárticos pelo expurgo emocional promovidos internamente em nós!

“Terríveis, sim, terríveis são as dúvidas que o adivinho pôs em minha mente; não creio, não descreio, estou atônito. Adeja o meu espírito indeciso, perplexo entre o passado e o presente” (p. 50, SÓFOCLES). Essa é a fala do herói Édipo, na obra canônica grega Édipo Rei – inclusive há uma análise escrita por mim, para os curiosos, sobre uma adaptação italiana para o cinema sobre esse eterno clássico literário – já entendemos, então, que junto doutras manifestações, Oldboy é baseada na estrutura poética da Tragédia. Implanta-se a dúvida sobre o protagonista, da qual desconhecemos por completo quem é ou o que faz, na verdade, sendo inclusive contraditória propositalmente nomeá-lo do herói ideal, afinal, sua primeira impressão é péssima. Bêbado, em uma delegacia, sem condição nenhuma de sociabilidade, com tendências agressivas desrespeitando as normas. Esboça já alguém bem fora do controle ou com muitos vícios, longe do ideal quando vemos Édipo, tornando-se rei após salvar a cidade resolvendo o enigma da Esfinge. Dae-su, interpretado pelo Choi Min-sik – que faz um trabalho genial que será ressaltado em partes do texto, a essencialidade de seu trabalho é absoluta neste filme – é, após ser liberado da delegacia, sequestrado após ligar para sua filha.

“Ria e o mundo rirá com você. Chore e chorará sozinho” uma frase no quadro do quarto em que o protagonista da obra Dae-su está preso e ficara por mais de uma década, diz toda a base na qual a história é centralizada. É seu epítome, o pilar ideal do roteiro.

E aqui, notamos outra referência pesada em Oldboy, tomando em suas veias basilares, “o conde não acaba de nos dizer que a sabedoria humana cabe inteira nestas palavras?” (p. 1370, DUMAS). Afinal “- quem é o senhor? – replicou a voz. – Um infeliz prisioneiro – respondeu Dantès, que não opunha, por sua vez, nenhuma dificuldade para responder” (p. 173, DUMAS). Dantès, que se tornará o icônico Conde de Monte Cristo, também passou dias prisioneiro, pego pelos infortúnios, carregando dentro de si um ódio lascivo por aqueles que promoveram seus trágicos e injustos momentos. Porém, como foi dito e é repetido: não sabemos o porquê de Dae-su ter sido aprisionado, além de acusado pela morte da esposa após seu sequestro, enlouquecendo dentro de sua prisão, buscando suicídio e escrevendo em cadernos os nomes de todas as pessoas que teve alguma espécie de conflito. E aqui, com a narrativa guiada pela voz do nosso protagonista, acompanhamos as mudanças do mundo através de uma televisão minúscula, formando-se em total isolamento, treinando com cenas de artes marciais e comendo o mesmo gyoza. A inteligência do filme, traçando o paralelo do quadro com o visual insano de Dae-su, de cabelos grandes, até o ínfimo detalhe da repetição dos acontecimentos em sua prisão, colocam as pontes iniciais da Tragédia. O diretor sabe onde quer chegar, cria as conexões, estabelece os mínimos parâmetros desde o guarda-chuva que é mostrado antes da tela de créditos iniciais ser exibida, aos ponteiros do relógio que formam o título. Aqui, é implantado a curiosidade e a pergunta fatal: “por que?”.

Cena icônica dos paralelos visuais

Aqui, o diretor junto de uma equipe que planejara muito bem sua história, entende que “o pensamento é tudo o que nas palavras pronunciadas expõe o que quer que seja ou exprime uma sentença” (p. 30, ARISTÓTELES). Assim, “os caracteres permitem qualificar [o personagem], mas é da ação que depende sua infelicidade ou felicidade” (p. 30, ARISTÓTELES). Eles entenderam que esses pensamentos, necessitam expor as dúvidas e enlaçar as motivações – vale lembrar, que a escolha da trilha sonora, utiliza do que é chamado de leitmotif, técnica criada por Richard Wagner, que cria temas que se repetem toda vez que certa cena de um personagem específico ou assunto acontece, e com o perdão da informalidade da palavra: é uma trilha sonora absurda de boa, valendo-se de interpretações clássicas instrumentais com aparatos eletrônicos que embalam o público, não vi um sequer que assisti junto não elogiar as músicas – não ficam somente na exposição das falas! – vale lembrar que Aristóteles comentava sobre o Teatro Grego – mas na imagem, ressaltando a inteligência de entender que visual também é parte da narrativa, que exprime pensamentos, exprime mensagens, estruturadas com o auxílio da música, gerando impressões aos significantes – que somos nós – e assim, cria-se os motivos, as dúvidas, as perguntas que desenlaçam nas ações, que irão ditar as infelicidades ou felicidades do nosso protagonista, logo, entendemos que no arco de Dae-su, “na [sua] tragédia, o que mais influi os ânimos são os elementos da fábula, que consistem nas peripécias e nos reconhecimentos [afinal é] o elemento básico da tragédia [sendo] sua própria alma” (p. 31, ARISTÓTELES).

Dae-su, quando é solto de maneira inexplicável, depara-se com a essencial e importante personagem Mi-do (Kang Hye-jeong), que cuida do mesmo após desmaiar no restaurante de sushi, devorando um polvo vivo. Sabemos sua origem? Quase nada, nem mesmo nosso personagem entende do porquê da simpatia automática da menina para com ele, incluindo sua suspeita da conexão da mesma com os responsáveis pelo seu sequestro e prisão. Pouco à pouco, nós também simpatizamos com o carisma da personagem, com toda sua ingenuidade inata auxiliando na investigação do protagonista, buscando a descoberta dos causos que lhe foram feitos. Aqui é o ponto sem volta, não há retorno para Dae-su, e qual é o seu ponto de partida para encontrar a solução? O bendito do gyoza que ele comia todos os dias na prisão, onde em determinado dia encontrou um pedaço de papel com parte do nome do restaurante. Rastreando o restaurante, rastreia o entregador que pode vir a leva-lo onde estava aprisionado. Essa série de acontecimentos, levam o personagem a uma das cenas mais emblemáticas da história cinematográfica: a famosa luta no corredor de Dae-su contra diversos capangas da prisão, filmada por sem cortes, em um plano bidimensional – valeu homenagens em tantos filmes, sendo uma das referências mais famosas a mesma cena ocorrendo na série de O Demolidor, da Netflix – com uma violência gráfica nada gratuita, denotando brutalidade e consequências físicas. No fim, todo o treino acompanhado pelas cenas da televisão, transformaram Dae-su em um excelente e resistente lutador.

Cena icônica do corredor

O filme, segue estabelecendo seus altos e baixos, revelando e nos enganando no decorrer da trama, apresentando o terceiro personagem central da trama, o carismático – e extremamente estiloso – Lee Woo-jin, interpretado por Yoo Ji-tae. Responsável pelo rapto de Dae-su, engana e conquista o público, mas ao mesmo tempo, não deixa o pontual repúdio e ódio que gera, afinal, é quem antagonizou e destruiu a vida do nosso herói Dae-su, que até ali, já está em nossos corações, movendo a trama com nós torcendo para que tudo venha a se revelar e ser resolvido em sua vingança contra aquele que lhe roubou a vida. Nos altos e baixos da trama, é estabelecida a motivação: “Dae-su, você fala demais”. Ficamos extasiados, com essa simples informação: o que isso quer nos dizer? O que transmite para o personagem, que perdido em sua memória, não lembra o seu erro no passado. É aqui, com a reação do protagonista visitando sua antiga escola, que cria a conexão com o título do filme: “College Old Boys”, relembra o ponto crucial que criaria a tragédia do seu presente e futuro. “Pois ouve: os olhos teus são bons e todavia não vês os males todos que te envolvem” (p. 46, SÓFOCLES). A ponte central que conecta aos clássicos temas da Tragédia grega. Lee Woo-jin e sua irmã Lee Soo-ah (Yoon Jin-seo) se amavam e eram incestuosos. Aqui, quando Dae-su entende que sua fofoca gerou impactos, mas quais? O que aconteceu?

No clímax, na cobertura do prédio de Lee Woo-jin, é onde as palavras escritas por Sófocles, ditas por Tirésias o oráculo, fazem o plano de fundo da trama de Oldboy brilhar: “Verás num mesmo dia teu princípio e fim” (p. 47, SÓFOCLES). Dae-su, entende, que pelas suas falas, provocou uma gravidez imaginária em Lee Soo-ah, que comete suicídio se jogando ao rio, porém considerava que Lee a tinha matado, por encontrar uma foto da mesma na ponte onde teria se jogado. Não, não fora essa a história, não conectara direitos os pontos, enquanto o vilão, solta a frase mais impactante de todas: “você não se fez a verdadeira pergunta: por que foi liberto do seu cativeiro?”, nós, o público, entretido na trama, com suas curvas, enganações e revelações, se perdeu dessa questão, atentamente escondida e diluída no decorrer do longa todo. Aqui é a catarse, que vem em ondas, cada vez mais altas, tal qual uma orquestra aguardando o ápice para expurgar nossas dúvidas, anseios, questões, abraçando-nos no ápice enquanto público, acelerando corações e preenchendo com tudo que há de mais belo na expressão da arte! Dae-su, aperta o teórico controle que pararia o marca-passo no coração de Lee Woo-jin, mas se mostra outra artimanha, outra ferramenta no aparato vingativo do vilão. Inicia-se uma gravação, um áudio, de Dae-su e Mi-do fazendo sexo pela primeira vez, dada a proximidade e intimidade que ambos constroem conforme investigam juntos o porquê de Dae-su ter sido preso. Uma caixa, na mesma tonalidade e nas cores daquele guarda-chuva exposto antes dos créditos iniciais, além das asas de anjo de brinquedo, que ela usa, fazendo paralelos com o presente que Dae-su entregaria para sua filha na cena inicial do filme, mas, afinal, o que há ali? O que está acontecendo? O arrepio é incontrolável, nós vemos diante dos olhos históricos de Édipo, fazendo as conexões do seu passado, entendendo que ele é inexorável, impossível de alterar, entendendo que matara o próprio pai e se relacionara com a sua própria mãe!

Aqui, é o desfecho de uma das cenas mais impactantes da história do cinema! Dae-su descobre… que Mi-do é sua filha! E que ela, presa em segurança no seu cativeiro de origem, está diante da mesma caixa contendo o mesmo álbum de fotos! Que tragédia, que desgraça, que expressão mais linda da arte! Não existem palavras possíveis para descrever o rumo que as atuações tanto de Choi Min-sink e Yoo Ji-tae tomam. Édipo diz “que haveria eu de olhar ou amar? Que palavras ainda ouviria com prazer, meus amigos? Nenhuma!” (p. 111, SÓFOCLES), após ver o suicídio da esposa-mãe, perfurando os próprios olhos. Dae-su implora, se transforma no cachorrinho de Lee, numa das cenas mais humilhantes e agonizantes do cinema! Faz dos olhos de Édipo sua própria língua, cortando-a implorando para que o vilão dê a ordem de retirar a caixa diante de Mi-do!

O vilão, que sai de cena, rindo, entrando no elevador solta sua frase icônica: “Eu e minha irmã pelo menos nos amávamos, mas e você Dae-su? É capaz de amar ela ainda?”. Aqui a tragédia põe seu ponto ápice e final. Não há volta, não há retorno. A vingança do protagonista se dissolve na própria tragédia de seu destino e desfecho.

Não há sentimentos capazes de expressar essas cenas finais, onde Dae-su abandona a própria identidade, escondendo no seu mais fundo âmago da psique o Monstro, aquele que sabe tudo, aquele que entende tudo. A vingança se forma em dupla face, e catárticos somos abandonados aos créditos finais. Oldboy ainda é a maior e mais bela expressão do que os gregos nos trouxeram! Oldboy é a porta de abertura para o que o cinema coreano viria a trazer de tão fortes, com Parasita, I Saw The Devil e muitos outros exemplos que podem ser citados. Com uma fotografia incrível, trilha sonora marcante e atuações que enaltecem mais ainda toda essa obra cinematográfica, é um eterno e infinito clássico que deve e merece ser falado e revisitado de tempos em tempos, para nos lembrar do peso de uma história muito longe dos finais felizes, tanto quanto da própria força do cinema!

Faço das palavras de Corifeu para Édipo, o encerramento dessa longa jornada: “Quantos motivos tens para lamentações! São grandes os teus males e inda sofres mais por teres a noção de sua enormidade” (p. 111, SÓFOCLES).

“Ria e o mundo rirá com você. Chore e chorara sozinho”. Solitário mesmo que acompanhado, Dae-su está fadado eternamente a saber e a não saber os seus feitos e acontecimentos. A ignorância é uma dádiva…

Referências Bibliográficas: 

ARISTÓTELES, Poética e Tópicos I, II, III e IV, São Paulo: Hunter Books, 2013.

BARTHES, Roland. Da Obra ao Texto. In: ______. O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 65-75.

DUMAS, Alexandre, O Conde de Monte Cristo, Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

SÓFOCOLES, Édipo Rei, Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

 

Filme: Oldboy
Elenco: Choi Min-sik,  Kang Hye-jeong, Yoo Ji-tae
Direção: Park Chan-wook
Roteiro: Park Chan-wook, Nobuaki Minegishi, Hwang Jo-yoon, Lim Joon-hyung, Garon Tsuchiya
Produção: Coréia do Sul
Ano: 2003
Gênero: Tragédia, Drama, Ação.
Sinopse: Dae-Su é raptado e mantido em cativeiro por 15 anos num quarto de hotel, sem qualquer contato com o mundo externo. Quando ele é inexplicavelmente solto, descobre que é acusado pelo assassinato da esposa e embarca numa missão obsessiva por vingança.
Classificação: 16 anos
Distribuidor: NEON
Streaming: Indisponível
Nota: 10,0

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